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16/03/21
Por Fernando Facury Scaff*
Longe de mim querer fazer alguma espécie de balanço ou de retrospectiva de um ano ímpar na história da humanidade, que se tornará para sempre o Ano da Grande Pandemia de Covid-19, que ceifou milhões de vidas ao redor do planeta, com números ainda crescentes. Nesta primeira coluna de 2021, o intuito é apenas o de traçar uma das características de 2020, que foi a do predomínio da ciência e da tecnologia, e, com isso, constatar que o mundo encolheu.
No início do século, o jornalista Thomas L. Friedman (não confundir com o economista Milton Friedman) lançou um livro extremamente interessante, que cito de memória, intitulado “O mundo é plano”. Nessa obra ele constatava, com bastante razão, que as distâncias socioeconômicas haviam encolhido em face da globalização, e que, se considerássemos o mundo como uma espécie de pirâmide, em que as nações mais desenvolvidas ocupassem seu topo, estava ocorrendo uma espécie de achatamento (por favor, não o confundam com um reles terraplanista; o enfoque é outro). No livro ele discorre sobre diversos aspectos, como o da contabilidade de grandes corporações norte-americanas cuja escrituração não era mais realizada naquele país, mas na Índia, com um custo muito menor e maior agilidade em razão do fuso horário. Outro aspecto por ele destacado foi o da logística, que passou a considerar pontos de distribuição das mercadorias de forma global, a fim de atender ao comércio eletrônico em qualquer parte do mundo, e não apenas no território de um certo país — e isso antes da explosão da Amazon e do DHL. O livro é deveras interessante e a tese central de que o mundo havia se tornado mais plano em razão da globalização é muito pertinente.
Uso a mesma lógica para dizer que em 2020 nosso mundo encolheu, em face da pandemia. Destacarei apenas alguns pontos para reflexão.
Desmaterializamos nossos contatos pessoais. Aplicativos como o Zoom, o Google Meets e assemelhados invadiram nosso dia a dia. Eles antecedem a pandemia, mas seu uso era residual, e não central em nosso quotidiano. Nas relações de ensino, essas plataformas foram determinantes, assim como o Moodle. Para a atividade judicial os sistemas de notificação eletrônica se ampliaram, assim como as audiências virtuais. O que era já existia, como a TV Justiça, passou a ser um instrumento importantíssimo para conhecer o que estava sendo julgado nos tribunais brasileiros. Avôs e avós passaram e manter contato com suas famílias, às vezes em continentes distantes, através desses sistemas. A medicina não teria tido condições de desenvolver uma vacina contra a Covid-19 em tão pouco tempo sem esses sistemas de comunicação e o contato e esforços coletivos com um mesmo objetivo. Conheço um professor de Direito Tributário que, com alegria, me dizia que havia participado de um evento na Índia pela manhã e à noite ministraria aulas de graduação na USP, com apenas uns cliques no computador, sem sair de sua casa. O alcance disso foi enorme, e as ideias passaram a circular com maior facilidade e amplitude.
Isso ocorreu não apenas no âmbito da comunicação e dos serviços, mas também no e-commerce, o que é um pouco mais complexo, pois envolve a entrega física de mercadorias. Enquanto muitos estavam de quarentena, e outros nem tanto, as compras pela internet se multiplicaram, tornando, mais uma vez, o que era periférico em central. Até mesmo um sistema de pagamentos simplificado, como o Pix, foi disponibilizado à população.
Enfim, pessoas se conectaram virtualmente de forma mais fácil umas às outras através desses instrumentos tecnológicos, e, com isso, também a ciência avançou e muitos sobrevivemos. Paradoxalmente, 2020, o ano da Grande Pandemia, foi o ano da ciência e da tecnologia.
A ideia de que a Terra encolheu parte da maior proximidade entre as pessoas, e a ampliação da quebra de fronteiras físicas, com ampla desterritolização. Dificilmente teríamos iniciado a vitória da raça humana contra o vírus — o que já ocorre em alguns países, que possuem governos mais atentos aos cuidados de sua população — sem essa possibilidade de conexão fácil, rápida e barata.
Mantendo o plano das metáforas, não se pode afirmar, como fez o jornalista Thomas Friedman no início do século, que o mundo se tornou mais plano durante a pandemia, pois a desigualdade socioeconômica se ampliou. Quem dispunha de tecnologia partiu na frente, e as diferenças na retomada econômica ampliarão as diferenças nesse âmbito. Nesses meses pandêmicos já transcorridos constata-se que os pobres ficaram ainda mais pobres e os ricos ainda mais ricos, e que esse fosso tende a se ampliar, a despeito de medidas pontuais de auxílio emergencial concedido aqui e alhures. Esse abismo social não respeita fronteiras, embora também isso esteja ocorrendo entre países. Isso lembra uma música dos Titãs: “Miséria é miséria em qualquer canto/Riquezas são diferentes/Índio, mulato, preto, branco/Miséria é miséria em qualquer canto”.
A ideia, colocada para debate, é que o mundo encolheu, pois nos tornamos mais próximos, dissolvendo barreiras físicas e territoriais. O que antes requereria horas de voo e tempo para sua realização foi reduzido para frações de minutos. Foi também potencializada a colaboração científica em rede, como se vê no âmbito da medicina. No seio de nossos lares, escritórios ou laboratórios, pudemos acessar o mundo e trabalhar em conjunto, com foco, rapidez e baixo custo. Nesse sentido é que me parece ter o mundo encolhido.
Para que tudo isso funcione mais e melhor é necessário ter governos preocupados com o bem estar da população, e que não neguem o valor e a importância da ciência e da tecnologia. Não foi o que se viu no Brasil em 2020 — espero que mude.
Quando nosso quotidiano voltar ao normal, o que espero ocorra rapidamente, esse novo patamar de relacionamento estará presente em nossas atividades pessoais e nas decisões de investir das empresas. Será isso que estão chamando de novo normal?
Confesso que estou louco de vontade de voltar a aglomerar saudavelmente com os amigos e familiares, com os colegas docentes e alunos, com advogados, clientes e juízes, e até mesmo com a moça que serve café na padaria da esquina — de qualquer esquina.
Nesta primeira coluna de 2021, desejo a todos que possamos rapidamente voltar a aglomerar presencialmente com saúde.
*Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e atualmente no exercício da presidência da Comissão de pós-graduação da faculdade.
Artigo originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 5 de janeiro de 2021