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16/03/21

A alarmante relativização da reserva legal tributária pelo STF

Fernando Facury Scaff*

 

Todos sabemos que o Supremo Tribunal Federal tem o direito de errar por último. E que a doutrina tem o dever de apontar os erros, muito mais no sentido de correção de rumos do que para simplesmente criticar de modo vazio. Não penso que seja possível fazer doutrina no curto espaço desta coluna, mas é no intuito de auxiliar o STF que escrevo estas mal traçadas linhas – que, por sua vez, certamente serão objeto de outras análises.

 

Centro minha atenção em dois julgamentos realizados semana passada, que foram objeto de reportagem de Fernanda Valente “na capa” desta ConJur, inclusive com links para os dois votos do ministro Dias Toffoli, Relator dos casos, e que obteve maioria de votos no Plenário do STF, excetuada a divergência do ministro Marco Aurélio.

 

Os julgamentos referem-se à Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.277 e ao Recurso Extraordinário 1.043.313, este com repercussão geral. Nos dois casos o ponto central em debate era a possibilidade de flexibilização do princípio da reserva legal tributária (artigo 150, I, da Constituição Federal), acerca do qual já escrevi recentemente. E, em ambos, a relativização ocorreu no âmbito das contribuições sociais do PIS e da Cofins. Foi considerada constitucional a criação, por lei, de uma espécie de alíquota teto, dentro da qual o Poder Executivo teria a possibilidade de aumentar ou reduzir a carga tributária por simples decreto. É como se houvesse uma espécie de escala móvel com teto, dentro do qual o Poder Executivo poderia calibrar as alíquotas.

 

A rigor, não se trata de uma novidade no âmbito de outros tributos, como, aliás, foi bem indicado nos votos do ministro Toffoli, pois a Constituição expressamente permite essa escala móvel de alíquotas com teto para o IPI, o Imposto de Importação, o Imposto de Exportação e o IOF (artigo 153, parágrafo 1º).

 

Ocorre que para o PIS e a Cofins não há previsão constitucional – eis o problema e a razão para o alarme aqui relatado.

 

Foram apresentadas diversas decisões como paradigmas: (1) o RE 343.446, que trata de Seguro de Acidentes do Trabalho (SAT), relatada pelo ministro Carlos Mário, em março de 2003; (2) decisões quanto a contribuições no interesse de categorias profissionais, como no RE 704.292, de outubro de 2016, relatado pelo próprio ministro Dias Toffoli, e (3) na ADI 4.697, relatada pelo ministro Edson Fachin em junho de 2016. Foi apresentado também (4) o RE 838.284, igualmente relatado pelo ministro Dias Toffoli, em outubro de 2016, que trata de taxa de fiscalização, cobrada por esses conselhos profissionais. Vamos a eles.

 

O RE 343.446 sequer teve sua admissibilidade conhecida, mas, a despeito disso, foi considerado como paradigma. Nele, o STF entendeu constitucional que no SAT as alíquotas variassem de acordo com a atividade preponderante da empresa, e consoante seu grau de risco, se leve, médio ou grave, os quais de caracterizam como conceitos jurídicos indeterminados, admitindo que o enquadramento das empresas nesses critérios esteja a cargo do Poder Executivo. Contudo, a diferença em face da recente decisão sobre PIS/Cofins é que, nesta, foi admitida uma escala móvel de alíquotas a serem calibradas para cima e para baixo pelo Poder Executivo, e naquela, do SAT, o Poder Executivo detém o poder de enquadrar as empresas de acordo com os parâmetros indicados, sem aumentar ou diminuir as alíquotas ao seu bel prazer. Convenhamos que são situações diferentes, e que, de fato, o caso não serve como paradigma – quando muito como argumentação.

 

No RE 704.292 foi decidido que as contribuições anuais devidas aos conselhos de fiscalização de profissões regulamentadas deveriam obedecera um teto legal, sendo vedado delegar a tais Conselhos a competência de fixar ou majorar tais anuidades, o que foi objeto da Tese 540 da Repercussão Geral. Também na ADI 4.697, na qual também se discutiam as contribuições no interesse de categorias profissionais, houve decisão a favor da fixação de teto legal da alíquota, devendo os Conselhos obedecê-lo. Nestes dois casos a alegada situação paradigmática não se configura com plenitude em face de seu alcance, uma vez que tem razoabilidade a cobrança diferenciada em cada unidade federativa, a fim de se adaptar às peculiaridades locais. O princípio federativo foi valorizado.

 

No RE 838.284, referente à taxa pelo exercício do poder de polícia (Anotação de Responsabilidade Técnica), há um teto de 5 MVR (Maior Valor de Referência), porém tal cobrança em cada caso concreto está limitada ao valor efetivamente despendido no exercício daquela atividade fiscalizatória – esta é que limita o valor cobrado.

 

Resumindo: os paradigmas apontados (1) ou se referem a conceitos indeterminados, nos quais o Poder Executivo tem melhor condição de identificar o grau de risco e a atividade preponderante da empresa; (2) ou dizem respeito a contribuições no interesse de categorias profissionais, quando o princípio federativo foi privilegiado, obedecendo à regra do teto; ou (3) à cobrança de taxa, que tem seu limitador no efetivo exercício do poder de polícia, à margem da regra do teto estabelecida.

 

Em suma, os paradigmas indicados não são paradigmas, pois não possuem a mesma ratio decidendi dos casos que estavam sendo julgados, além de se referirem a espécies tributárias periféricas no sistema, diferentemente do PIS/Cofins, centrais ao sistema de arrecadação tributária.

 

Retornando ao voto condutor, destaco este trecho, com grifo aposto:

 

É claro que essa orientação deverá ser temperada, ou mesmo não seguida, quando houver norma constitucional específica tratando do assunto; por exemplo, tornando mais restrita ou impedido a flexibilização da legalidade tributária em relação a tal exação.

 

Ocorre que esse alerta não foi seguido nos julgamentos, pois o STF, sem qualquer amparo constitucional, passou a validar a regra do teto, pela qual foi permitida a adoção de escala móvel de alíquotas para o PIS e a Cofins, nos dois casos em apreço, criando uma sistemática semelhante à que existe para o IPI, IOF, Imposto de importação e de exportação – estes com expressa autorização constitucional. O argumento central é que se trata de uma questão de extrafiscalidade, porém, qual norma constitucional ampara tal permissão?

 

Trata-se de um perigoso erro, pois o STF validou uma conduta absolutamente à margem da Constituição, relativizando uma norma que é a base na qual se assenta todo o sistema constitucional tributário, que é a reserva legal tributária.

 

A partir daqui, nada impede que sejam estabelecidas alíquotas máximas para todos os tributos. Já imaginaram o Imposto de Renda sob tal nova regra? E o ICMS? Se esta moda pega – e tem tudo para pegar em um país estruturalmente deficitário em suas contas públicas – como ficarão os direitos fundamentais dos contribuintes?

 

Se a preocupação era com a arrecadação já ocorrida, que fossem modulados os efeitos das decisões, e não convalidadas leis que não cabem na Constituição. A modulação foi criada exatamente para isso.

 

É necessário revisar este entendimento com a máxima urgência, pois ele pode se tornar paradigmático para outros casos, sem o necessário filtro, como se vê no uso dos precedentes pelo próprio STF, no qual até mesmo decisões que sequer tiveram sua admissibilidade reconhecida são considerados paradigmas – exemplos não faltam, como o aqui referido RE 343.446 relatado pelo ministro Carlos Mário. O que não foi julgado não pode ser considerado paradigma – quando muito é um obter dictum, com valor argumentativo.

 

Com esse entendimento o STF reduz sua posição de guardião da Constituição e o contribuinte se torna ainda mais desprotegido. Passamos do quadro de preocupação para o de alarme. É necessário que no âmbito tributário o STF adote um freio de arrumação em sua função de guarda, e não de dono da Constituição. A insegurança jurídica foi ampliada.

 

*Fernando Facury Scaff é advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados; é professor da Universidade de São Paulo e doutor em Direito pela mesma Universidade.

 

Artigo publicado originalmente na Revista Consultor Jurídico em 14 de dezembro de 2020