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16/03/21
Por Fernando Facury Scaff*
Esta coluna se pretende uma cápsula do tempo, para que não só o leitor atual, mas também para que o leitor do futuro saiba o que ocorreu nestes tormentosos dias que vivemos, nos quais Estados e a União disputaram a narrativa do protagonismo na defesa da população contra o vírus. Tudo isso demonstra a importância do federalismo como uma instância de fracionamento do poder político.
De um lado o governo federal, inerte e negacionista há 11 meses, começa a se mexer para vencer na narrativa do protagonismo na vacinação, com vistas às eleições de 2022. O Ministro da Saúde (1) que estava tranquilão, não vendo razão de tanta “ansiedade sobre o início da vacinação”, informou que seria iniciada “no dia D e na hora H”. Dias após (2) o mesmo Ministro passou a ter uma pressa enorme, enviando um avião fretado, e não da FAB, para buscar vacinas na Índia, que (3) seriam as mesmas que estão licenciadas para serem produzidas no Brasil, pela Fiocruz. A busca era para (4) conseguir importar 2 milhões de doses da Índia, sendo que (5) a população brasileira é de 204 milhões de habitantes, o que requer 408 milhões de doses, caso sejam necessárias duas doses por habitante. Parece claro que essa quantidade não dá para vacinar um único bairro de São Paulo. Ocorre que (6) não deu certo, pois não combinaram direito com os indianos.
O governo federal ainda (7) proibiu a exportação de seringas, o que é uma medida correta, mas inócua, pois apenas um fabricante nacional exporta uma quantidade ínfima de sua produção; (8) deu isenção para a importação desses bens, o que também está correto, mas é uma medida tomada a destempo, para esconder sua inépcia na logística da vacinação; a despeito de (9) ter aumentado em dezembro/20 a tributação para importação de oxigênio hospitalar, o que (10) somou mais um complicador na crise vivenciada em Manaus, onde faltou oxigênio e ampliou o número de mortos por sufocamento naquela cidade. E, pasmados, (11) vimos o auxílio aos manauaras vir da Venezuela, a despeito de (12) as autoridades locais saberem dessa carência desde novembro de 2020. A ação do governo federal foi (13) fazer um post nas redes sociais recomendando tratamento precoce contra o coronavírus, o qual (14) foi tarjado pelo Twitter como uma “publicação enganosa e potencialmente prejudicial”, o que aponta para possível fake news.
O governo federal, atordoado, (15) havia feito uma requisição administrativa de agulhas e seringas que os Estados possuem em estoque, para dar início à vacinação, visando vencer a narrativa de que é o governo federal que está agindo, quando, na realidade, os Estados é que foram previdentes na organização dos seus estoques. Foi necessário (16) o estado de São Paulo ir ao STF para impedir tal “desapropriação”, o que foi deferido pelo Ministro Lewandowski na ACO 3.463, que faz referência a outros episódios semelhantes envolvendo ventiladores pulmonares, decididos pelo STF na ACO 3.385 (Maranhão; relator min. Celso de Mello) e ACO 3.393 (Mato Grosso; relator min. Roberto Barroso). O que se vê, (17) no âmbito da narrativa, é a alegação do governo federal de que não vai comprar as seringas e agulhas porque está caro.
O governo federal faz tudo isso em razão de que (18) foi desorganizado e retardado na aquisição das seringas e agulhas, a despeito de ter a frente do Ministério da Saúde um general alegadamente especialista em logística, e (19) com a finalidade de iniciar a vacinação antes que o estado de São Paulo a inicie.
Na verdade, (20) o governo federal adquiriu as vacinas do Butantan, a despeito de as ter ironizado fortemente e negado a intenção de comprá-las. Porém, (21) não conseguiu informar quantas doses da vacina do Butantan deveriam ficar em São Paulo.
Finalmente, (22) no dia 17 de janeiro de 2021 a Anvisa aprovou o uso das duas vacinas, a do Butantan, que já produziu 6 milhões de doses, e a da Fiocruz, ainda em fase de produção, (23) tendo sido imediatamente vacinada a primeira brasileira, Mônica Calazans, 54 anos e que trabalha na UTI do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, em São Paulo.
O custo de toda essa operação ainda será apurado pelo TCU, que vem acompanhando as ações do governo federal no combate à pandemia. Vamos acompanhar seu relatório, que deverá analisar toda essa operação do governo federal, inclusive os declarados incentivos ao uso de medicamentos não recomendados pela ciência médica.
Os estados também se moveram, conforme se vê nas ações perante o STF acima mencionadas. São Paulo, desde o início, lutou para conseguir desenvolver a vacinação de sua população, em parceria do Instituto Butantan com um laboratório chinês, a despeito de ter sido desvinculado 30% do fundo para pesquisa alocado constitucionalmente para financiar a ciência e a tecnologia, administrado pela Fapesp.
O Maranhão também teve protagonismo, propondo perante o STF a ACO 3.451, pela qual requereu que seja declarada a possibilidade de seu estado “deflagrar a elaboração e execução de plano de imunização no âmbito do seu território, inclusive buscando a celebração de acordos para aquisição direta de vacinas”, o que foi deferido por liminar do relator, ministro Lewandowski. Outros estados se movem no sentido de proteger sua população — e, claro, também conseguir uma vitória na narrativa.
De fato, o tal “Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19” do governo federal não disse quando a vacinação iria começar e nem como iria ocorrer, sendo apenas um apanhado de boas intenções, contestado até mesmo por um conjunto de cientistas que alegadamente deram aval ao documento. Não se deve esquecer que esse Plano só veio à lume em razão da ADPF 754 e da ADI 6.625, também de relatoria do ministro Lewandowski, que inclusive teve de intimar a União para informar a quantidade de seringas e agulhas alegadamente em estoque.
Lembremo-nos que em passado recente fomos referência internacional em vacinação da população, tendo um ex-ministro da Saúde afirmado que “O Brasil é dos únicos países que conseguem em um único dia vacinar 10 milhões”. É de doer…
A contar pelo exemplo do presidente, não usaríamos máscaras e nem estaríamos quarentenados, o que potencializaria o número de infectados, alguns dos quais com graves sequelas que impactarão o SUS por muitos anos, e o número de mortos. O exemplo presidencial arrasta multidões, e é nefasto no âmbito do combate ao vírus, aumentando o número de doentes, além da capacidade do SUS em os atender.
Dados da Organização Mundial da Saúde de 16/1/2021 apontam que para cada 1 milhão de habitantes, o Brasil já contabiliza 974 mortos, atrás dos Estados Unidos com 1.164 mortos, e a frente de outros países dos BRICS: Rússia (446 mortos), Índia (110 mortos), China (3 mortos) e África do Sul (614 mortos). Donald Trump, neste específico assunto, conseguiu fazer a América “Great Again”; mas, a depender do governo federal, conseguiremos obter dos norte-americanos esse inglorioso lugar, fazendo com que o Brasil fique “acima de todos”, como no slogan presidencial.
Gostaria que esta coluna encerrasse com o final dessa história, mas outros episódios ainda virão, infelizmente. Deve-se escrever, documentar e divulgar para não perder a memória deste momento ímpar de crise sanitária e federativa e destacar a importância desse mecanismo de fracionamento do poder central, pois é necessário que haja mais Brasil e menos Brasília, que, a despeito de ter sido o slogan da campanha presidencial de 2018, só tem funcionado a partir de decisões do STF, guardião da federação, contra as tentativas de centralização excessiva do governo federal, que sequer o papel constitucional de coordenação das ações nacionais tem feito, conforme obrigado pelo STF na ADPF 672, relatada pelo ministro Alexandre de Moraes e comentado em outra coluna.
A população brasileira não merece esse tratamento. Necessitamos de ações governamentais concretas, e não essa disputa pela narrativa do combate à pandemia, que se revelou na fotografia do primeiro brasileiro a ser vacinado. A pergunta é: quando haverá vacina (e seringas e agulhas e algodão etc.) para todos os brasileiros?
*Fernando Facury Scaff é advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados; é professor da Universidade de São Paulo e doutor em Direito pela mesma Universidade.
Artigo originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 19 de janeiro de 2021