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16/03/21
Por Fernando Facury Scaff*
O ponto sob análise é singelo, mas corriqueiro, e trata de um aspecto do chamado Custo Brasil. Infelizmente é muito comum a situação em que um fornecedor de bens ou serviços, ou de ambos, como na questão de obras, uma empresa privada entregar o que foi contratado, mas não receber o pagamento correspondente. Será necessário que o Poder Judiciário, ao final de uma demanda cobrando o pagamento, expeça precatório para receber o que foi contratado? Esta situação se encaixa nas regras gerais processuais (arts. 543, 544 e 910, CPC)? Entendo que existe uma situação em que a expedição de precatório é desnecessária – vamos a ela.
Precatórios são ordens judiciais expedidas pelo Poder Judiciário para que o Poder Público, ao final de um processo (trânsito em julgado), determine o pagamento em favor do credor. Determina o art. 100, CF, que tais pagamentos serão feitos “exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos”. Parece claro que, nestas situações, a ordem judicial se refira a uma obrigação de pagar.
Ocorre que a situação em apreço tem um diferencial importantíssimo, que remete à forma de contratação e à forma de comprovação de que o contrato foi cumprido.
Parte-se do pressuposto que toda contratação com o Poder Público (federal, estadual, distrital ou municipal, suas autarquias e estatais dependentes – art. 2º, III, LRF) seja feita através de procedimento licitatório, sob qualquer de suas modalidades, ou mesmo nas hipóteses em que ele é legalmente dispensado. Nestes casos existe uma cláusula obrigatória, que muitas vezes passa despercebida nas análises de Direito Administrativo, mas que é importantíssima para o Direito Financeiro, que é a cláusula do empenho.
O art. 60 da Lei 4.320/64, que veicula normas gerais de Direito Financeiro, determina de forma inequívoca que é vedada a realização de despesa sem prévio empenho, considerando que empenho é “o ato emanado de autoridade competente que cria para o Estado obrigação de pagamento pendente ou não de implemento de condição” (art. 58, Lei 4.320/64). Ou seja, é necessário, em qualquer contrato firmado com o Poder Público, que haja uma cláusula reservando o valor que deverá dar o suporte financeiro ao pagamento respectivo dentro das rubricas orçamentárias afetadas àquele órgão.
Observe-se que a existência de empenho, por si só, não garante o pagamento, pois o art. 58 acima transcrito menciona “pendente ou não de implemento de condição”. A situação é simples. Suponhamos que tenha sido contratado por uma Prefeitura a compra de 100 carteiras escolares, para entrega em duas etapas: metade em 30 dias e as restantes em 90 dias, para pagamento 15 dias após cada entrega. A confirmação de cada entrega é feita por um ato do Poder Público (no exemplo, a Prefeitura), denominado de liquidação que “consiste na verificação do direito adquirido pelo credor tendo por base os títulos e documentos comprobatórios do respectivo crédito” (art. 63, Lei 4.320/64). No exemplo, após a entrega do primeiro lote de carteiras, a Prefeitura deverá atestar que as recebeu conforme contratado (tecnicamente diz-se liquidar a despesa) e pagar o valor respectivo no prazo contratado; o mesmo devendo ocorrer após a entrega e liquidação do segundo lote. Ou seja, a liquidação comprova que a “condição” exigida pelo contrato foi cumprida.
Da norma acima transcrita deve-se destacar a expressão “direito adquirido” do credor, isto é, uma vez liquidada a despesa, ou seja, reconhecido que foi fornecido exatamente o que foi contratado, surge para o credor “direito adquirido” ao recebimento daquele crédito que está financeiramente reservado através da cláusula de empenho.
Em suma: a cláusula de empenho fornece ao contratado a garantia de que o dinheiro está reservado para pagá-lo, sendo, portanto, uma garantia para o recebimento de seu crédito, o qual só se consolida, como seu “direito adquirido”, se houver a efetiva liquidação por parte do Poder Público.
O que fazer se, realizada a liquidação da despesa, não ocorrer o pagamento (arts. 64 e 65 da Lei 4.320/64)? A resposta é: ir ao Poder Judiciário.
Aqui começa a via crucis do contratado/credor para receber o que lhe é devido. Mesmo tendo normativamente direito adquirido a receber o valor (art. 63, Lei 4.320/64), o contratado/credor, como regra, inicia um processo de conhecimento, usualmente através de uma ação ordinária, que, posteriormente, gerará um processo de execução fundada em título judicial (art. 910, CPC), a qual poderá ser embargada pela Fazenda Pública (art. 910, §§ 1º e 2º, CPC). Só essas duas fases já demanda mais de uma década de processamento judicial para ser solucionada. Ocorre que, após estas duas fases, ainda resta a etapa do precatório, que jogará ainda mais para a frente o pagamento devido, com muitas incertezas jurídicas quanto ao seu recebimento.
Ocorre que existe outra possibilidade, fugindo da regra acima exposta. Como o contratado/credor possui direito adquirido ao recebimento daquele valor, pois houve a liquidação da despesa (art. 63, Lei 4.320/64), embora não tenha havido o pagamento (arts. 64 e 65, Lei 4.320/64), e o montante está empenhado (art. 58, Lei 4.320/64), pode-se propor diretamente uma execução fundada em título extrajudicial (contrato + empenho + liquidação; arts. 534 e 535 c/c art. 910, §3º, CPC), com imediata penhora sobre o valor empenhado. Observe-se que esse caminho abrevia vastamente o processo, pois prescinde do processo de conhecimento, e da fase de precatório, pois já terá havido penhora sobre o valor empenhado.
O atento leitor que acompanhou a exposição até este ponto se perguntará: e a impenhorabilidade dos bens públicos, onde fica?
Pois bem, o art. 832, CPC, estabelece que “não estão sujeitos à execução os bens que a lei considera impenhoráveis ou inalienáveis”, porém abre uma pertinente exceção no art. 833, §1º, onde consta:
“A impenhorabilidade não é oponível à execução de dívida relativa ao próprio bem, inclusive àquela contraída para sua aquisição.”
Pois bem, o empenho é a demonstração da reserva financeira dentro do orçamento daquele órgão para pagamento do valor contratado, e a liquidação comprova que o contrato foi cumprido. Logo, com base no §1º, do art. 833, CPC, constata-se que o montante a ser penhorado, correspondente ao que foi empenhado e não pago, permite a penhora, pois comprovada documentalmente que se trata de “dívida relativa ao próprio bem, inclusive àquela contraída para sua aquisição”.
Logo, conforme demonstrado normativamente, nem sempre é necessário usar a via processual mais complexa para recebimento dos valores, caindo inexoravelmente no sistema de precatórios. As normas mencionadas permitem o uso de instrumentos processuais mais simples e ágeis, inclusive através da penhora do dinheiro que foi empenhado para cumprimento daquela obrigação contratual, que foi comprovadamente cumprida em face da liquidação. E nem se cogite de afirmar que esse dinheiro público é bem de uso comum ou de uso especial, sendo, na estreita consideração do Código Civil, um bem dominical (art. 99), afetado financeiramente para pagamento de um contrato.
O extenuado leitor que chegou até este ponto da exposição, pode ainda perguntar: é usual a utilização desta via expressa processual? A resposta é: não. Embora não tenha efetuado pesquisas empíricas para saber as razões de não ser usada esta alternativa, algumas ideias me ocorrem, a serem comprovadas academicamente: (1) os contratados/credores não a utilizam por medo de represálias do contratante; (2) incertezas quanto ao entendimento dos Tribunais; (3) a alternativa dos precatórios é a regra mais rotineira e conhecida por todos os Tribunais; e (4) pouca análise das especificidades do Direito Financeiro, pois estas situações são normalmente tratadas pelos cultores do Direito Administrativo (para os quais os mecanismos financeiros do empenho e da liquidação não tem a mesma importância), e pelos estudiosos do Direito Processual Civil, que se ocupam em estudar os precatórios apenas sob sua ótica.
O fato é que, sem nenhuma alteração normativa, a via acima apontada permite a redução do Custo Brasil, afastando as incertezas quanto ao efetivo recebimento dos valores contratados e não pagos por parte do Poder Público — o que, repito, infelizmente é muito usual em nosso país.
*Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e atualmente no exercício da presidência da Comissão de pós-graduação da faculdade.
Artigo originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 2 de fevereiro de 2021