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16/03/21

As incertezas jurídicas na determinação da base de cálculo da CFEM

Por Fernando Facury Scaff*

 

Quem lida com a tributação do setor mineral conhece o que é a Compensação Financeira pela Exploração Mineral (CFEM), que, a despeito de ser um preço público, é normalmente analisado pelos departamentos tributários das empresas.

 

E seguramente conhece a enorme alteração promovida durante o governo Temer em sua cobrança, no seio do que então foi bastante debatido, e que ficou conhecido como o Novo Marco Legal da Mineração, o qual, em apertada síntese, se resumiu apenas em aumento da CFEM e transformação do vetusto DNPM na Agência Nacional de Mineração (ANM).

 

A alteração promovida na apuração da base de cálculo em caso de consumo do bem extraído foi uma das mais amplas de toda a Lei 13.540/2017, gerando grande incertezas. A alteração estabeleceu nova redação para o artigo 2º, II, da Lei 8.001/90, determinando que na hipótese de consumo do produto mineral a base de cálculo da CFEM incida “sobre a receita bruta calculada, considerado o preço corrente do bem mineral, ou de seu similar, no mercado local, regional, nacional ou internacional, conforme o caso, ou o valor de referência, definido a partir do valor do produto final obtido após a conclusão do respectivo processo de beneficiamento”.

 

Em diversas situações concretas é infindável a complexidade para apuração do preço corrente do bem mineral no mercado local, regional, nacional ou internacional, por diversas razões: (1) existe uma enorme quantidade de bens minerais e cada qual tem características próprias; por exemplo, o minério de ferro não é o mesmo em qualquer mina, variando conforme o teor de ferro nele contido, o que faz variar seu preço no mercado internacional, pois se trata de um produto que possui cotação na London Metal Exchange (LME). Porém, (2) diversos outros bens minerais não possuem cotação dessa natureza, o que ocasionou uma válvula de escape na norma, através da inclusão da expressão “ou seu similar”, o que gera um poder imenso nas mãos do órgão regulador, no caso a ANM, para regular a matéria através do critério de similaridade. Assim, pode haver dificuldade de identificação do bem mineral em comércio, por exemplo: pode ocorrer de existir cotação em bolsa internacional para o minério de ferro com teor X de pureza, mas não para o teor Y; serão similares? Pode ocorrer de não haver cotação em bolsa internacional, semelhante à LME, tal como ocorre com outros minérios, por exemplo areia ou granito. Neste caso, como proceder? O caso dos granitos, que se constituem em bens minerais para uso em acabamento de construções civis é emblemático, tal a diversidade de colorações e granulometria possíveis.

 

Neste ponto, a incerteza da empresa mineral se torna enorme, e o poder do órgão regulador muito grande, pois, em concreto, é ele que determinará a classificação do bem mineral em comércio, a teor do artigo 2º, parágrafos 10 e 14, da Lei 8.001/90, acrescidos pela Lei 13.540/17.

 

O parágrafo14 do artigo 2º, ao atribuir à ANM esse poder, previu a edição de um decreto que estabelecesse a metodologia para tal classificação, de modo que jazida com maior teor da substância mineral implique aumento relativo do valor de referência.

 

O Decreto 9.252/17 estabeleceu o valor de referência do bem mineral na impossibilidade de ser determinado o preço local, regional, nacional ou internacional (artigo 3º).

 

Este valor de referência passou a ser calculado de acordo com o índice de enriquecimento do bem mineral, a partir de normas internas estabelecidas pela ANM (artigo 5º).

 

Daí surge a fórmula a ser aplicada (Anexo I, Decreto 9.252/17), que envolve três variáveis: valor de referência (VR), valor de produção (VP) e fator de ajuste (FA). Desse modo, o valor de referência corresponderá ao valor de produção multiplicado pelo fator de ajuste.[1]

 

Para tornar operacional esta fórmula, é necessário estabelecer esse fator de ajuste, que, conforme o artigo 6º do Decreto 9.252/17, será definido para cada faixa de classificação do índice de enriquecimento e considerará cada substância mineral, conforme os teores das minas em operação no País, informados nos relatórios anuais das atividades. Sua variação é de 10 pontos percentuais para mais ou para menos, conforme o índice de enriquecimento (artigo 6º, parágrafo 1º), gerando assim três faixas: (I) para o maior índice de enriquecimento, o fator de ajuste será 0,9; (II) para o médio índice de enriquecimento, o fator de ajuste será 1; e (III) para o menor índice de enriquecimento, o fator de ajuste será 1,1 (artigo 6º, parágrafo 2º).

 

Decorrente dessa diretriz surge a fórmula prevista no Anexo II (Decreto 9.252/17) envolvendo três variáveis: o índice de enriquecimento (IE), o teor concentrado (TC) que é o teor médio do mineral de interesse obtido após a etapa final do processo de beneficiamento, e o teor da alimentação (TA) que é o teor médio do mineral de interesse alimentado na primeira etapa do processo de beneficiamento, oriundo do minério extraído da mina (run of mine). Desse modo, o índice de enriquecimento corresponderá ao teor concentrado dividido pelo teor de alimentação.[2]

 

Tentando tornar mais simples esta fórmula: a lógica exposta é que, quanto menor o índice de enriquecimento, maior será o valor da CFEM na hipótese de consumo.

 

O parágrafo 10 do artigo 2º da Lei 8.001/90, alterado pela Lei 13.540/17, estabeleceu a competência da ANM para regular a matéria, determinando “se o critério será o preço corrente no mercado local, regional, nacional ou internacional ou o valor de referência” dentro dos moldes estabelecidos pelo Decreto 9.252/17.

 

Em síntese: ficou ao alvedrio da ANM/DNPM estabelecer “se o critério será o preço corrente no mercado local, regional, nacional ou internacional ou o valor de referência” (parágrafo 10 do artigo 2º da Lei 8.001/90, alterada), o que gera margem para enormes discussões jurídicas, pois esse órgão regulador é que definirá se a base de cálculo da CFEM será o preço praticado ou o valor de referência por ela estabelecido.

 

Esta competência delegada foi exercida, advindo a Portaria 239, de 26 de março de 18, ainda do DNPM, antes de se transformar na ANM.

 

Esta portaria estabeleceu faixas de classificação de índice de enriquecimento para alguns minerais, porém, em face da amplitude das possibilidades classificatórias, criou uma válvula de escape normativa, determinando no artigo 3º, que, “na hipótese de inexistir preço corrente no mercado, o interessado poderá requerer à entidade reguladora do setor, de forma devidamente justificada, a inclusão de substância mineral no Anexo desta Portaria”.

 

Essa abertura normativa é sintomática, pois revela a dificuldade operacional da fórmula adotada, sua efetiva impraticabilidade e a fragilidade jurídica daí resultante, pois

 

A dificuldade operacional decorre da completa impossibilidade de, normativamente, se regular a fórmula proposta, em face da vastidão dos bens minerais existentes e de seus complexos índices de enriquecimento, que se modificarão de acordo com a evolução tecnológica.

 

Com isso, avulta a impraticabilidade, pois apenas sobre os poucos minerais indicados se pode ter alguma certeza do montante a pagar, em decorrência da fluida base de cálculo adotada. Todos aqueles que extraem e consomem os bens minerais que não estiverem inseridos na Portaria deverão submeter seus processos produtivos à ANM para que saibam em qual faixa de base de cálculo da CFEM estarão inseridos. Fórmula complexa, inadequada e pouco prática.

 

Tudo isso gera incertezas e insegurança jurídica, pois não se sabe ao certo quanto se deverá pagar de CFEM, em razão da complexidade e da fluidez normativamente adotada, além de permitir que a ANM estabeleça de forma unilateral se o preço praticado será ou não validado, adotando-se em substituição o valor de referência por ela determinado.

 

Pode parecer pouco, mas não é. A incerteza jurídica afasta os investimentos e abre portas para incontáveis oportunidades de desvios de conduta, repudiados pelas boas regras de compliance. Isso pode permitir o aumento do valor da CFEM sem amparo legal, uma vez que a regra infralegal atribui ao órgão regulador um poder de cobrança de valores que podem não refletir o que as normas legais determinam. O que justifica estar na tabela de valor de referência da Portaria 239/18 e não ser aceito o preço efetivamente praticado? E mais, caso enquadrado como preço de referência, havendo uma oportunidade negocial ou um avanço tecnológico na área de exploração mineralógica ou metalúrgica haverá modificação daquele produto mineral nas faixas estabelecidas – como saber?

 

Seguramente o artigo 2º, parágrafo 10, da Lei 8.001/90, com a alteração efetuada, abre uma possibilidade inadequada e gera incertezas, e a Portaria DNPM 239/18 convalida essas fragilidades, conforme apontado, permitindo sua contestação judicial.

 

[1] A fórmula constante do referido Anexo I é: VR = VP x FA

 

[2] A fórmula constante do referido Anexo II é: IE = TC/TA

 

*Fernando Facury Scaff é advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados; é professor da Universidade de São Paulo e doutor em Direito pela mesma Universidade.

 

Artigo originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 22 de fevereiro de 2021