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18/11/20

As inconstitucionalidades dos incentivos fiscais paulistas no PL 529/20

Fernando Facury Scaff e Thales Falek*

O governo paulista apresentou o PL 529/20, propondo à Assembleia Legislativa bandeirante (Alesp) que aprovasse um rol de medidas visando a assegurar o equilíbrio das contas públicas estaduais causados pelo aumento exponencial de despesas sanitárias e sociais, por meio de um amplo ajuste fiscal.

Entre outros aspectos, a proposta sugere a aprovação de um mecanismo para redução dos benefícios fiscais relacionados ao ICMS no artigo 24 do referido PL, ao estabelecer que será da competência do Poder Executivo: a renovação dos benefícios fiscais que estejam em vigor na data da publicação do PL, desde que previstos na legislação orçamentária e atendidos os pressupostos da Lei Complementar Federal nº 101, de 4 de maio de 2000; e a redução dos benefícios fiscais e financeiros-fiscais relacionados ao ICMS na forma do Convênio Confaz nº 42/2016.

Alguns aspectos dessa proposta de norma apontam para inconstitucionalidades.

Primeira preocupação. Se aprovado o texto, ficará ao exclusivo critério do governador a redução dos benefícios fiscais de ICMS, o que viola diversas normas, com destaque para o artigo 178, CTN, que estabelece que as isenções “concedidas por prazo certo e em função de determinadas condições” não podem ser revogadas ou modificadas a qualquer tempo, e, mesmo assim, essa mudança só pode ocorrer “por lei” [1]. No mesmo sentido determina a Súmula 544 do STF: “Isenções tributárias concedidas, sob condição onerosa, não podem ser livremente suprimidas”. Ou seja, se aprovado o texto, já aponta para defesa dos contribuintes perante o STJ e o STF, de forma concomitante.

Além disso, se a Alesp autorizar que o Poder Executivo renove ou reduza os benefícios fiscais relacionados ao ICMS sem leis estaduais específicas, haverá violação ao artigo 150, §6º, da CF, que determina que a outorga de qualquer benefício fiscal deverá ser precedida de lei específica que a regulamente.

Nesse ponto, a própria exposição de motivos do PL nº 529/2020 reconhece que o recente acórdão proferido pelo STF, no julgamento ADI 5929, determina a necessidade de leis estaduais específicas para renovação ou redução de benefícios fiscais. Contudo, busca afastar o entendimento da Corte Suprema ao alegar que “a necessidade de se conferir segurança jurídica e previsibilidade econômica, e em uma tentativa de promover a adequação dos benefícios ao retrato jurídico vigente” seja suficiente para que a renovação dos benefícios fiscais venha a ser conferida mediante decreto.

De toda forma, a ausência do Poder Legislativo nesses tipos de concessões fiscais tem o potencial de sancionar a esdrúxula possibilidade de aumento de tributo por decreto, o que bate de frente com o artigo 150, I, CF, que reserva o princípio da reserva legal ao aumento de tributos.

Segunda preocupação. A proposta equipara a benefício fiscal a fixação de alíquota em patamar inferior a 18%. Ou seja, o PL nº 529/2020 autoriza o Poder Executivo a majorar as alíquotas de ICMS que estejam legalmente fixadas abaixo de 18%, via decreto do governador do Estado, o que é uma leitura reversa da seletividade desse tributo. Constata-se que parcela significativa dos itens relacionados no artigo 34 da Lei 6.374/89 estão abaixo da alíquota de 18%, são essenciais para o consumo, tais como aves, gado bovino, suíno, caprino ou ovino, ovo, farinha de trigo, escova de dentes, medicamentos genéricos, fármacos de soluções parenterais, preservativos e telecom (internet banda larga popular) etc.

Com isso, caso haja a aprovação dessa norma, haverá aumento do ICMS e, inevitavelmente, um aumento nos preços desses bens, com repasse dos valores aos consumidores que já estão com uma renda reduzida e comprometida por conta dos prejuízos causados pelo coronavírus. Isso será agravado pelo consequente aumento de inflação projetada para os períodos futuros.

Ao autorizar que o Poder Executivo aumente esses percentuais fixados por lei mediante um simples decreto, o PL nº 529/20 violará o princípio da reserva legal em razão da necessidade de lei especifica que verse sobre tal ponto.

Terceira preocupação. Ao se referir expressamente ao Convênio Confaz 42/16, o governador aponta para: 1) a redução dos incentivos atualmente concedidos em 10%, ao menos/ e 2) a criação de uma espécie de fundo de incentivos fiscais, que já foi adotado em diversos Estados, e que estão sendo contestados perante o Poder Judiciário em face das infrações normativas acima referidas.

Contraponto. No momento de elaboração do PL, a arrecadação estava em situação muito diferente da atual. Perdas de arrecadação de cerca de 20% mensais ocorridas em abril, maio e junho, foram reduzidas em julho para próximo de 8% e, desde agosto, tais perdas foram consideravelmente reduzidas, devendo ser normalizadas em outubro (sem contar os caraminguás concedidos pela União, fruto da Lei Complementar 173).

Tais preocupações, somadas a várias outras, vêm gerando grande aflição a todos os segmentos da economia que, de alguma forma, operam no Estado de São Paulo. Essas disposições têm o potencial de gerar discussões jurídicas sobre a adequação do modelo proposto às regras constitucionais que balizam o sistema tributário nacional e a forma que União, Estados e município devem adotar para legitimar uma correta arrecadação.

É preocupante, mas há solução: basta a Alesp se adequar aos ditames constitucionais que balizam a arrecadação e, em hipótese alguma, aumentar a carga tributária dos contribuintes. Caso contrário, parece que o artigo 24 do PL nº 529/20, se transformado em lei, terá enorme potencial de ser julgado inconstitucional.

[1] CTN: Artigo 178 — A isenção, salvo se concedida por prazo certo e em função de determinadas condições, pode ser revogada ou modificada por lei, a qualquer tempo, observado o disposto no inciso III do artigo 104.

*Fernando Facury Scaff é Professor Titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) e sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados.

Thales Falek é sócio do escritório Carrilho Donas Advocacia, tem MBA em Gestão Tributária pela FIPECAFI, é cofundador e coordenador do Grupo de Estudos da Tributação do Agronegócio e cofundador e coordenador do Grupo de Estudos sobre Política Tributária.

Texto originalmente publicado no Consultor Jurídico.