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03/09/20
Fernando Facury Scaff*
Consta ser de Percival Farquhar a frase, proferida no início do século passado: “ninguém sabe ainda o que fazer com a Amazônia”.[1] Farquhar havia trabalhado na construção do canal do Panamá e estava investindo em diversas obras no Brasil, dentre ela a construção da ferrovia Madeira-Mamoré, visando escoar a produção de borracha da Bolívia e de Rondônia até o porto de Belém, também construído por ele. Após perder toda sua enorme fortuna devido a problemas jurídicos, proferiu a frase acima.
Como qualquer floresta, a amazônica não é apenas um conjunto de árvores, mas um bioma no qual convivem múltiplas espécies vegetais, minerais, animais, pessoas autóctones (índios, ribeirinhos) e outras que lá chegaram em várias levas migratórias, internas (por exemplo, os soldados da borracha) e internacionais (imigrantes de diversas nacionalidades, desde portugueses, na primeira leva migratória, libaneses, judeus e norte-americanos, fugidos de perseguição em seus países de origem, bem como quilombolas, fugitivos da migração forçada para a escravidão). O grande desafio é desenvolver a região, sem quebrar esse delicado bioma, que envolve também a diversidade de núcleos urbanos complexos (como Belém e Manaus) e biomas diversificados como os campos (savana) de Roraima. As belas imagens de Sebastião Salgado publicadas na Folha de S.Paulo e de Luiz Braga na revista Forbes ajudam a expor esse mosaico de diversidades.
Desenvolver, nesse sentido, não se caracteriza como levar o progresso, lema positivista de nossa bandeira, mas dar qualidade de vida ao homem da região, sem destruir o bioma. A lógica deve ser muito mais próxima das teorias de Amartya Sen do que as de Augusto Conte. Conforme expus em outro texto nesta ConJur, é necessário dar sustentabilidade à região, e não apenas conservar ou progredir, motivo pelo qual não prosperaram as iniciativas de Farquhar, Henry Ford, Daniel Ludwig dentre vários outros.
Para tanto, não se deve deixar ao sabor do mercado as políticas de sustentabilidade para a região, principalmente na sua parte brasileira, pois a floresta envolve oito países do norte da América do Sul. Uma iniciativa nesse sentido foi adotada pelo Tratado de Cooperação Amazônica, cujos primórdios datam de 1978, e há muito abandonado. A lógica de livre mercado é curtoprazista pois envolve lucros imediatos, o que acaba por descambar na destruição da floresta. É necessário preservá-la, mas também dar sustentabilidade à região. Não observar essa diretriz acaba em desmatamento acelerado e descoordenado, como o que vem ocorrendo.
Uma ideia de Celso Furtado para o Nordeste no final dos anos 50 foi particularmente interessante. Propunha que as ações governamentais naquela região fossem coordenadas por um único órgão e tivessem uma ação planejada visando ultrapassar o subdesenvolvimento e reduzir a desigualdade regional. Tal iniciativa faria com que as fronteiras de cada Estado fossem ultrapassadas e o planejamento regional fosse conjunto e coordenado. Vê-se tal escopo na Lei 3.692/59 que criou a SUDENE, porém não se encontra
este mesmo perfil na Lei 5.173/66 que criou a SUDAM – vários anos se passaram entre as duas normas e Celso Furtado já havia tido seus direitos políticos cassados pelo Ato Institucional nº 1, de 1964. Hoje, SUDENE e SUDAM, após um período de limbo jurídico e de atuação efetiva, apenas gerenciam a concessão de incentivos fiscais federais para a região, sem cumprir o papel desenvolvimentista que inicialmente havia sido projetado para o Nordeste. Aos governadores, em face da inércia do governo federal, restou apenas se envolver em uma guerra fiscal fratricida, reduzindo suas receitas próprias de ICMS para atração de empresas.
É sobre esse pano de fundo que se inicia uma nova e alvissareira rodada de debates empresariais sobre o futuro da Amazônia, conforme reportagem de Daniela Chiaretti no jornal Valor Econômico de 26 de agosto, sob o nome de Concertação, com mais de 100 líderes empresariais, tendo à frente Guilherme Leal, sócio da Natura, e envolvendo outros nomes de peso na nossa economia, como Itaú, Bradesco, Santander.
Nessa reportagem chama a atenção a frase de Ana Toni, Diretora Executiva do Instituto Clima e Sociedade (ICS), ao mencionar que “temos que dar visibilidade e fortalecer as vozes da Amazônia”. Muito bom. Existe um conjunto qualificadíssimo de instituições de pesquisa, sociais e empresariais que podem auxiliar fortemente no debate, mas que estão trabalhando sem qualquer coordenação nacional. Não se pode discutir Amazônia sem ouvir, desde lá, instituições de Pesquisa como o INPA, o Museu Emílio Goeldi, a UFPA, que, inclusive, tem um Núcleo de Altos Estudos Amazônicos e um Programa de Pós-Graduação com atividades voltadas ao homem e o meio ambiente, a UFAM, dentre outras. O mesmo vale para as Instituições empresariais como, por exemplo, a FIEPA, FIEAM e FIERO, e Organizações Sociais, como o IMAZON. Seguramente isso não afasta iniciativas de outras Instituições de extrema importância e qualificação não localizadas na Amazônia, como a USP, que possui múltiplos Programas que possuem interface com o tema, inclusive na Faculdade de Direito (Aspectos Jurídicos da Exploração dos Recursos Minerais e Petrolíferos no Brasil).
Os desafios são enormes, envolvendo a preservação do meio ambiente, atividades econômicas (como mineração, agronegócio, hidrelétricas, industrialização, bioeconomia, tecnologia) e ações governamentais (tributação e ecologia, incentivos fiscais e financeiros, federalismo), tendo por centro o homem. Como escrevi no texto mencionado, não existem soluções mágicas. O sistema de utilização racional que vier a ser implantado, dependerá de nossa capacidade de gerenciar a exploração sustentável da floresta, mantendo-a e gerando renda suficiente para que os habitantes daquela região tenham dignidade e qualidade de vida. Este é o desafio jurídico e econômico a ser enfrentado e espero que a Concertação avance, sendo corretíssima a lógica de concerto de uma orquestra, porém também correta a tentativa de conserto do que está presente.
Até aqui a atuação governamental federal na atividade de coordenação foi a criação do Conselho Nacional da Amazônia Legal, à cargo do Vice-Presidente da República. Por ora, o que se vê é o anúncio do bloqueio de 24% do orçamento do IBAMA, a fim de custear o auxílio emergencial de R$ 600,00. Tal bloqueio foi negado pelo Vice-Presidente e aparentemente revertido. Aguardemos as ações e proposições concretas de coordenação que deverão vir.
Louvo a iniciativa da Concertação e espero que dê certo, pois não se replanta a floresta – pode-se replantar árvores, e o local se tornar um belo bosque, mas não será uma floresta, nem o mesmo bioma e nem será a Amazônia, cujo dia se comemora na próxima semana, em 05 de setembro.
*Fernando Facury Scaff é Professor Titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) e sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados
Texto originalmente Consultor Jurídico no dia 01/09/2020