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21/05/24
Fernando Facury Scaff
Ao caro leitor ou leitora que clicou no link para abrir este texto, lembro que se trata do terceiro episódio de uma minissérie que escrevo sobre o tema. O primeiro já foi publicado aqui e o segundo, aqui. Neste episódio faço uma comparação entre o sistema de programação orçamentária baseado em precatórios e o amparado por empenhos, característica das contratações administrativas. Espero que apreciem.
No último episódio, a ser veiculado daqui a quinze dias nesta ConJur, na coluna Contas à Vista (que não se confunde com a coluna Justiça Tributária), apresentarei uma interpretação contemporânea do artigo 100, CF. Aguardem.
III – Cotejo entre a programação orçamentária do sistema de precatórios e a do sistema de contratação
Faz-se um contraponto para reforçar a diferença entre os dois sistemas de programação orçamentária: o contratual e o precatorial, sendo que ambos visam dar previsibilidade e segurança jurídica às partes envolvidas, dentre outros objetivos.
A previsibilidade orçamentária decorre da inclusão no orçamento de verba suficiente para fazer frente a uma despesa, o que garante os dois lados envolvidos: empresas e Poder Público. Isso pode ocorrer pela via dos precatórios ou pela via do empenho e liquidação.
A segurança jurídica implica na certeza e na garantia de que, uma vez cumpridas as obrigações, há dinheiro reservado no orçamento para realizar o pagamento conforme programado. Isso também pode ocorrer pela via dos precatórios ou pela via do empenho e liquidação.
No caso das decisões judiciais ou arbitrais que obrigam o pagamento, após um longo iter processual judicial é gerado um precatório, que, para ser pago, requer outro longo iter processual legislativo, que alocará verba no orçamento para pagamento dos valores. É esta sequência de processos judicial e legislativo que garante o pagamento dos credores dos precatórios, através da inclusão de recursos no orçamento.
No caso dos contratos, ao revés, há um iter processual administrativo, sendo que a reserva de valor orçamentário é efetuada na contratação, através dos diferentes tipos de empenho, que variam de acordo com as obrigações assumidas. Uma vez liquidadas, o pagamento se realiza. É o empenho que garante a existência de valor para quitar as obrigações assumidas, pois os recursos já estão previamente reservados no orçamento, por meio da Lei Orçamentária Anual, restando apenas ser executada pelo Poder Executivo.
Desta maneira, em caso de disputa judicial ou arbitral em torno do exato cumprimento das obrigações contratuais: (1) Havendo empenho, o pagamento das obrigações está garantido orçamentariamente, o que dispensa a programação financeira precatorial; e (2) não havendo empenho, o pagamento deverá ser programado orçamentariamente, via precatórios.
A tônica diz respeito à dinâmica orçamentária, pois a via contratual garante recursos, via empenho, no orçamento em curso, fazendo-o por meio de procedimento administrativo; e a via precatorial busca a inserção de recursos no orçamento posterior para garantir o pagamento, fazendo-o através de procedimentos judiciais e legislativos.
Logo, (1) reconhecida a completude das obrigações, isto é, procedida a liquidação pela via judicial ou arbitral, o prosseguimento normal do iter processual administrativo de pagamento deve se consumar, liberando o montante empenhado em favor do contratante; (2) caso o direito pleiteado não seja reconhecido, as obrigações não serão liquidadas e os recursos empenhados serão liberados em favor dos cofres públicos.
Havendo previsibilidade financeira e segurança jurídica com os recursos reservados pelo empenho, usar a via dos precatórios é um verdadeiro bis in idem. Será aplicar uma interpretação formalista e cartorial a uma situação que já se revela bastante e suficiente em termos de segurança jurídica, previsibilidade e garantia financeira.
IV — A decisão judicial ou arbitral como liquidação da etapa contratada. Cautelas processuais
Considera-se que o empenho garante a obrigação contratual e a liquidação gera direito adquirido ao contratante ao recebimento dos valores, isto é, gera direito adquirido ao recebimento do pagamento.
Não ocorrendo o pagamento, o contratante tem o direito de buscar seus direitos perante o Poder Judiciário ou perante um Tribunal Arbitral.
Como regra, o que se busca identificar perante essas Cortes, é saber se o contrato foi cumprido pelo contratante, e, em decorrência disso, pode-se pleitear uma indenização por perdas e danos. Sobre essas parcelas devem incidir juros e atualização monetária.
Qual a substância da decisão que estas Cortes virão a proferir, ao deliberar sobre o mérito da causa?
Se a decisão que transitar em julgado for pelo improvimento do pedido do contratante, não se há de falar em liquidação, pois não terá sido reconhecido o cumprimento do objeto contratado.
Se a decisão que transitar em julgado for pelo provimento do pedido do contratante, reconhecendo que aquela etapa do contrato foi cumprida, haverá o suprimento judicial ou arbitral da fase de liquidação da despesa, que deveria ter sido reconhecida administrativamente, mas não o foi. A decisão proferida nesse sentido reconhecerá/declarará que o avençado foi executado, e que o pagamento é devido pelo Poder Público, o que é fruto da própria natureza jurídica da decisão, ao reconhecer a procedência do pleito. A dúvida ocorre no passo seguinte, do pagamento, que é o problema sob análise.
Havendo provimento do pedido do contratante por meio de decisão judicial ou arbitral transitada em julgado, e, com isso, suprida a fase de liquidação, a fase seguinte, a do pagamento, deve ocorrer por meio da liberação da garantia orçamentária contratada, que é o empenho.
A decisão (judicial ou arbitral) supre a liquidação, isto é, a comprovação de que os serviços ou o bem adquirido foi regulamente prestado ou entregue. Com a liquidação pela via judicial ou arbitral, os contratos estão satisfeitos e o processamento do pagamento deve seguir seu regular trâmite: empenho/ liquidação/ pagamento.
O empenho garante o valor contratado e seu montante deve ser liberado para pagamento após a decisão judicial ou arbitral que reconheça a procedência do pedido quanto à realização daquela etapa contratada, suprindo assim a fase de liquidação.
Eventuais valores relativos à indenização por perdas e danos não estão cobertos pelo empenho, e deverão ser objeto de precatório.
Desta forma, a execução da decisão terá duas diferentes formas de cumprimento: (1) as parcelas inadimplidas deverão ser pagas conforme o valor empenhado; e (2) eventuais verbas indenizatórias deverão ser submetidas ao regime de precatórios.
Os acréscimos consectários de juros e atualização monetária de cada qual dessas parcelas deverão seguir o mesmo padrão.
Seria possível discutir se os juros e a atualização monetária estão inseridos no valor empenhado, porém esse debate não prosperaria, pois os juros encontram-se englobados na taxa Selic, que também faz as vezes de atualização monetária, sendo esta simples reposição do valor da moeda.
Logo, o nominalismo acarretará o enriquecimento sem causa do Poder Público, cujas receitas estão indexadas pela mesma taxa.
Logo, os juros Selic devem seguir a mesma fórmula financeira adotada para as parcelas contratadas, liquidadas em face de decisão judicial ou arbitral transitada em julgado e pagas mediante empenho; bem como deve seguir o rito precatorial os juros incidentes sobre eventual parcela indenizatória. O acessório (juros Selic) deve seguir o principal.
Como medida de cautela contra eventual cancelamento de empenho sem contraditório e ampla defesa, ou mesmo após esta, caso a justificativa apresentada não seja plausível, é possível e adequado o contratante buscar um provimento judicial ou arbitral que projeta a efetividade de uma decisão que lhe possa ser favorável.
No caso, o pedido acautelador deve ser para impedir o cancelamento do empenho enquanto durar a disputa judicial ou arbitral, uma vez que o valor nele representando é a garantia do adimplemento do contrato, cuja liquidação está sendo submetida àquela corte.
Tal procedimento antecipatório protegerá tanto a corte, pois garantirá os recursos financeiros para cumprimento da decisão que vier a ser proferida, bem como protegerá o contratante, que poderá receber tal como contratado.
Trata-se apenas de uma providência processual acautelatória, a proteger eventual futuro adimplemento da decisão transitada em julgado em favor do contratante.
Post scriptum: aguardem o episódio final, no qual será exposta uma interpretação contemporânea para o artigo 100, CF, em contraponto à interpretação tradicional-dominante.
Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.
Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 21 de maio de 2024.