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24/05/22

CONJUR: A exótica tributação sobre perdas de capital pelo Imposto de renda

Por Fernando Facury Scaff e Luis Carlos Szymonowicz*

É consagrada a existência dos seguintes campos econômicos para incidência tributária: renda, patrimônio e consumo, além do âmbito regulatório. No Brasil atual, em linhas gerais, a tributação da renda compete à União (IR), o consumo é tributado pelos três níveis federados (União: IPI, PIS e Cofins; estados: ICMS; municípios: ISS), bem como a propriedade (União: ITR; estados: IPVA; municípios: IPTU). Observada essa classificação, o ITCMD e o ITBI embora sejam tributos sobre a transferência da propriedade, devem ser considerados dentro deste campo econômico, e seguem a lógica canhestra de que se morre nos Estados e se vive nos municípios, o que determina sua competência.

Penso existirem pelo menos duas situações em que a União vem invadindo a competência tributária dos demais entes federados. Hoje tratarei apenas de uma, que se refere à ausência de correção monetária sobre as operações de compra e venda de bens e direitos, sobre as quais a Receita Federal obriga o pagamento de imposto de renda sobre ganhos de capital.

Grosso modo, o ganho de capital é apurado pela diferença entre o valor pelo qual você comprou o bem e o montante que qual você o vendeu. O artigo 136 do RIR (Regulamento do Imposto de Renda) estabelece que “o custo de aquisição dos bens ou dos direitos será o valor pago na sua aquisição”, não sendo atribuída “qualquer atualização monetária ao custo dos bens e dos direitos adquiridos após 31 de dezembro de 1995” (§1º). Esta regra surgiu no contexto do Plano Real, de 1994, que venceu a galopante inflação brasileira e permaneceu relativamente baixa até voltar a disparar nos últimos tempos.

Só para se ter uma ideia, calculando a inflação entre janeiro de 1996 e abril de 2022 constata-se variação da Selic em mais de 3.200%. Se for usado outro índice o montante será também enorme: 850% do IGP-M (FGV), e mais de 410% do IPCA-E. Supondo que você tenha adquirido um imóvel em janeiro de 1996 por R$ 1 milhão, e o vendesse em abril de 2022 por R$ 4 milhões, você seria obrigado a pagar R$ 450 mil de Imposto de Renda (15%) sobre a diferença entre aquisição e venda (R$ 3 milhões), sendo isso considerado como “ganho de capital” (propositalmente, para radicalizar o exemplo, deixamos de considerar o fator de redução, previsto no artigo 40 da Lei 11.196/05).

Assim, olhando com lupa, se aplicada a correção monetária do período sobre o bem adquirido, pelo menor dos indicadores acima considerados, será constatado que você perdeu dinheiro na venda, ao invés de ter tido ganho de capital. Em outras palavras, o valor de R$ 450 mil que o Fisco cobrou de Imposto de Renda nessa operação não seria devido, pois não ocorreu ganho, mas perda — simples assim. A conta é singela: o R$ 1 milhão de janeiro de 1996 se transformam em R$ 4,1 milhões em abril de 2022, usando o menor dos índices acima (IPCA-E de 410% no período). Logo, ao invés de lucro de R$ 3 milhões que obrigou ao pagamento de R$ 450 mil de imposto de renda sobre ganhos de capital (sem considerar o fator de redução), houve prejuízo de R$ 100 mil na operação, não sendo devido qualquer imposto. No caso, não houve valorização do bem, mas perda do poder aquisitivo da moeda (e do bem, consequentemente).

O §1º do artigo 136 do RIR estará adequado aos tempos atuais? Não.

Tributar a alienação de bens sem a devida correção monetária sobre o valor do bem adquirido (desde sua aquisição), torna o imposto de renda apurado sobre ganhos de capital um imposto incidente sobre a propriedade, o que implica em violação de diversas normas constitucionais: (1) as que estabelecem as competências tributárias, pois a União não a possui para tributar essa espécie de propriedade (a possui apenas para cobrar ITR, incabível na espécie); (2) ao assim proceder, a União viola novamente a Constituição ao impor tributação com efeito confiscatório, pois acarreta a perda da propriedade, como se verifica pelo exemplo acima; (3) e, em face disso, ultrapassa os limites da capacidade contributiva, a qual também é protegida pela Constituição.

Logo, o singelo fato de a União vedar a correção monetária nessas operações, impedindo que haja atualização do valor do bem alienado, acarreta pesados e inconstitucionais ônus aos contribuintes, conforme acima demonstrado.

O singelo exemplo envolvendo compra e venda de bens imóveis pode ser utilizado para a compra e venda de ações, quotas de empresas, ou qualquer outro bem sobre o qual esteja sendo cobrado imposto de renda sobre ganhos de capital.

Respondendo à questão acima, pode-se afirmar que não haveria problema tributário se a inflação se mantivesse baixa, mas sua explosiva dinâmica acarreta a inconstitucionalidade do §1º do artigo 136 do RIR. Em concreto, o que se tem atualmente é uma tributação incidente sobre perdas de capital, envolta em uma fantasia de ganho de capital — logo, inconstitucional.

Já foi pacificado que a correção monetária é apenas a recomposição do poder aquisitivo da moeda, sobre a qual não incide tributação.

Nesta situação só resta recorrer ao Poder Judiciário e, mesmo assim, limitado pelo prazo prescricional de cinco anos, acarretando que as empresas e pessoas físicas que tenham alienado ativos (bens moveis ou imóveis) anteriormente a 2017 já perderam o direito de buscar o que foi pago a maior.

Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.

Luis Carlos Szymonowicz é socio fundador da Szymonowicz Advogados e presidente da Comissão de Relações Internacionais da OAB-SP.

Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em  16 de maio de 2022.