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28/01/25

CONJUR: A federação da União e suas autarquias: diálogo com Hamilton Dias de Souza

Fernando Facury Scaff 

Hamilton Dias de Souza e Daniel Corrêa Szelbracikowski escreveram excelente texto denominado Reforma tributária e federação, um diálogo com Fernando Scaff, no qual comentam artigo que havia escrito antes, intitulado O federalismo e o mito do barco de Teseu após a reforma tributária. Honrado com o qualificado debate, sigo na prosa.

Federalismo é a forma de governo que permite partilhar o poder em determinado território, descentralizando e concedendo maior autonomia aos entes locais, de modo a permitir que suas peculiaridades sejam atendidas e respeitadas. No âmbito da arrecadação, isso permite que os gaúchos tributem menos a erva para o chimarrão e os paraenses tributem menos a produção de tucupi, itens essenciais para a cultura local.

Analisar o federalismo não é um debate estéril, algo como discutir o sexo dos anjos. É tão importante quanto a separação de poderes, pois é outra forma de divisão do poder, visando a desconcentrá-lo. Aliás, grande parte dos estudos no âmbito do direito público é voltada exatamente sobre como controlar o poder, sendo o federalismo (divisão territorial de competências) uma das mais importantes formas de dissolver sua concentração.

A reforma tributária instituída pela EC 132/23, e sua regulamentação parcial efetuada pela Lei Complementar 214/25, demonstram outros problemas muito bem expostos por Hamilton e Daniel em seu texto, no qual centram atenção para o “modelo dos colegiados de harmonização e o seu impacto sobre a capacidade tributária ativa dos entes e o amesquinhamento da federação”.

Uniformização na reforma tributária

Demonstram os autores que o Comitê de Harmonização e Fórum de Harmonização, criados para dispor sobre uniformização, interpretação, obrigações acessórias e procedimentos comuns ao IBS e à CBS, “tem representação indireta (para os entes subnacionais) e desigual entre os entes federativos”. A representação de estados e municípios será indireta, mediante indicação pelo presidente do Comitê Gestor.

Nesses fóruns, a União terá 50% da representação e os estados e municípios outros 50%. Um dos problemas que foi apontado encontra-se no conflito de interesses, que serão mais destacados entre os entes internos da federação do que propriamente na União, que se constitui em um bloco monolítico. E tudo isso com a manutenção da famigerada unanimidade de votos.

O texto de Hamilton e Daniel demonstra que a organização de fóruns semelhantes em outros países possui configurações bastante diversas, com maior amparo e representatividade dos entes subnacionais, ao invés do ente central da federação. E encerram afirmando que “parece que estamos diante de uma nova forma de organização do Estado brasileiro, que se aproxima de um modelo de Estado unitário decentralizado do que de uma verdadeira federação”.

O texto dos autores é bastante percuciente e constata que foi construído um modelo federativo centralizador, no qual a União terá papel preponderante, e os interesses locais serão relegados a um segundo plano. Na prática, teremos uma “Federação da União”, e não o que foi estabelecido pela Constituição de 1988 em seu artigo 1º: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos…”.

Observe-se, como sempre destacado por Onofre Batista, que nessa norma não consta o ente federado União, sendo afirmado que os estados, municípios e o Distrito Federal, unidos de forma indissolúvel, constituem-se em um Estado democrático de direito. O ente federado União não aparece nesse importante e emblemático artigo constitucional. Pelo que se lê da Constituição, a federação decorre da união indissolúvel de “estados e municípios e do Distrito Federal”, e isso foi invertido, colocando-se a União no centro do poder tributário nacional, sem ter sido modificado o texto deste artigo.

Federação da União
O garroteamento das competências arrecadatórias subnacionais por parte da União transformou nosso federalismo em uma Federação da União, na qual estados, Distrito Federal e municípios se tornarão uma espécie de autarquia federal. Com todas as ressalvas metodológicas, observem o conceito legal de autarquia e comparem: “serviço autônomo, criado por lei, com personalidade jurídica, patrimônio e receita próprios, para executar atividades típicas da Administração Pública, que requeiram, para seu melhor funcionamento, gestão administrativa e financeira descentralizada” (artigo 5º, I, Decreto-lei 200/67). Os entes subnacionais se tornarão autarquias de nível especial — denominação que se usa quando o tipo não cabe nas classificações anteriores.

O que se prevê, com enorme desconforto, é o surgimento de uma nova espécie guerra fiscal, em busca de novas fontes de receita, como, aliás, já começou, conforme expus neste texto. Taxas, contribuições e outras figuras exóticas ao âmbito tributário surgirão no horizonte, como uma forma de driblar a camisa de força imposta aos estados, Distrito Federal e municípios.

Será que as pessoas que estiveram à frente de todo esse projeto confiam tanto que só a União é capaz de uniformizar e harmonizar o sistema? Por que não adotaram a tão alardeada propaganda que seria seguido o que há de melhor no mundo? O texto de Hamilton e Daniel demonstra termos ficado a léguas de distância de paradigmas excelentes e pertinentes. A comunidade jurídica, que foi parcamente ouvida e pouco escutada, seguramente gostaria de conhecer os argumentos a respeito desse específico ponto federativo.

Fernando Facury Scaff
é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff – Advogados.

Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 28 de janeiro de 2025.