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07/12/21

CONJUR: As emendas de relator e a isonomia republicana na ADPF 854

Por Fernando Facury Scaff*

A ministra Rosa Weber concedeu liminar na ADPF 854 impedindo que fossem pagas as famigeradas emendas de relator inseridas no orçamento. O foco foi a questão da falta de transparência desses gastos, o que não significa a mesma coisa que publicidade, conforme já comentado em outro texto. Esses aspectos vêm sendo objeto de várias tentativas de drible pelo Congresso Nacional, que resiste em obedecer a decisão em toda sua extensão, como se vê no projeto aprovado.

Ocorre que esse aspecto não esgota o tema, pois, além do problema da transparência, existe outro, tão ou mais importante, que é o da isonomia republicana.

Como o nome indica, isonomia diz respeito à igualdade, e, usada no âmbito público, corresponde a um dos sentidos de república, de tratamento igual para todos.

Para melhor compreensão é necessário distinguir: (1) as emendas parlamentares individuais (art. 166, §§ 9º e 11, CF), (2) das emendas coletivas (art. 166, §12, CF), subdivididas em emendas de bancadas estaduais e emendas de comissões permanentes, e (3) das emendas de relator.

Sob a ótica da isonomia republicana, as emendas individuais e as coletivas contemplam todos os parlamentares, sejam de oposição ou de situação.

Já as emendas de relator são orçamentariamente opacas e não respeitam a isonomia republicana entre os parlamentares. Isso porque só quem tem “direito” a elas é quem vota com o governo — ou seja, servem como instrumento de cooptação de congressistas para votar conforme as pautas de quem tem o poder de liberar o dinheiro.

E quem libera o dinheiro? O Presidente da República, ou alguém em seu nome.

Funciona assim: é indicado um relator para um projeto de lei, que pode ser sobre casamento entre pessoas do mesmo sexo ou reforma tributária ou calote nos precatórios. Os parlamentares sopram no ouvido do relator que desejam dirigir uma parcela dos recursos do orçamento para uma determinada instituição ou obra em seu reduto eleitoral. O relator então sopra no ouvido do Presidente o interesse daquele parlamentar. A verba então é empenhada pelo Executivo na rubrica orçamentária RP9.

No passo seguinte ocorre a votação no Congresso: se o parlamentar vota conforme determina o relator, a verba empenhada é liberada para a finalidade eleitoral pretendida. Caso não vote conforme a orientação do relator, há o cancelamento do empenho, e a verba volta aos cofres públicos.

A expressão “sopra no ouvido” demonstra que o “rastro” orçamentário é de difícil controle, pois não se consegue identificar qual parlamentar votou por convicção, acreditando naquele projeto, e qual foi comprado pelo uso do dinheiro público. Os órgãos de controle (TCU, Ministério Público etc.) não conseguem controlar “sopros”, só o que fica escrito. Daí porque é tão valorizado pelos atuais governantes a referência de que “são pessoas que cumprem acordos”.

Seguramente se trata de um mensalão orçamentário, que privilegia quem vota com o governo, pois, para esse esquema funcionar, é necessário que haja alinhamento entre: (1) quem indica o relator de cada projeto de lei, que é o Presidente do Senado ou da Câmara, (2) o Presidente da República, que tem o poder de empenhar os recursos, e (3) o parlamentar, que vota mediante a liberação dos recursos.

Alerta aos desavisados: tudo isso ocorre com “o seu, o meu, o nosso dinheiro”, que é o dos impostos que pagamos todos os dias embutidos no preço do pão que se come no café da manhã ou no preço da gasolina, da energia elétrica, do gás de cozinha, e assim por diante.

Ocorre que nem todos os parlamentares vendem seus votos no esquema descrito — mas, como saber? Como separar o joio do trigo?

Coloque-se na posição do parlamentar defronte ao seu direito de voto em alguma das matérias acima mencionadas. Você está convicto que o melhor é votar no sentido de aprovar aquele projeto de lei, mas, como saber se seu colega de bancada está votando por nele acreditar ou por estar no esquema do mensalão orçamentário? Aqui se criam duas situações perversas de quebra de confiança no sistema político representativo: (1) dentre os próprios parlamentares, e (2) junto à população, pois não consegue distinguir quem votou por convicção, de quem votou por interesses financeiros pessoais. Tudo isso mina a credibilidade no sistema político democrático de representação parlamentar, e coloca a todos no mesmo “balaio de gatos”, o que é profundamente injusto.

Eis o problema das emendas de relator na quebra da isonomia republicana, pois só recebe a propina orçamentária (que é também opaca) quem vota nas propostas do governo, seja parlamentar da situação ou da oposição, transformando tudo em uma geleia geral.

Em síntese: trata-se da compra de votos parlamentares com o dinheiro dos impostos que pagamos.

É necessário que o STF olhe não apenas para a questão da publicidade e transparência das emendas de relator, mas também para a questão da isonomia republicana, que envolve a necessária impessoalidade e a moralidade no uso dos recursos públicos.

Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff Advogados.

Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em  07 de dezembro de 2021.