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25/03/25
Fernando Facury Scaff
Não existem dúvidas de que o Poder Legislativo deve aprovar por lei tanto os gastos quanto as receitas públicas e o nível de endividamento do Estado.
Sendo assim, qual o problema com os gastos estabelecidos pelas emendas parlamentares, pois todo seu regramento foi devidamente aprovado pelo Legislativo, tornando-se norma constitucional há mais de dez anos (EC 86/2015), conforme relato minucioso efetuado por Élida Pinto nesta ConJur?
Entendo que existem diversos pontos problemáticos, muitos deles analisados pelo ministro Flávio Dino em sua missão jurisdicional no STF, porém dois me parecem mais destacados e penso não terem sido devidamente considerados: a infringência aos princípios republicano e democrático. Serei breve, pois não serão necessárias muitas palavras para demonstrar o problema.
O princípio republicano está sendo violado pois o que é uma coisa pública passa a ter dono, que é o parlamentar ao qual foi destinada a verba a ser distribuída como emenda parlamentar (ou de bancada, ou de comissão, ou qualquer outro nome que lhe seja atribuído). Nesse modelo, o dono do dinheiro passa a ser o específico parlamentar, que dirige a verba para o destino que lhe seja eleitoralmente mais conveniente. Dias atrás estive em uma bela cerimônia de posse da vice-reitora de uma universidade federal, e o reitor, ao discursar, agradeceu aos deputados A e B que estavam no auditório, pois dirigiram parte da verba de “suas” emendas parlamentares para aquela instituição. Eis o ponto: o que era verba pública passou a ser verba desses específicos parlamentares, que, no caso, felizmente, a utilizaram em finalidades adequadas e não em maracutaias. Mesmo assim, sem considerar nenhuma fraude, o princípio republicano está sendo flagrantemente violado.
Em outro sentido, o princípio democrático vem sendo rompido de forma conjunta com o republicano, pois as emendas parlamentares reduzem fortemente a possibilidade de renovação dos cargos políticos no Poder Legislativo. Um político com-mandato recebe um caminhão de dinheiro por meio dessas emendas para exercer a atividade política junto ao seu eleitorado.
Será muito baixa a possibilidade de um político sem-mandato se eleger, pois não dispõe da mesma quantidade de dinheiro anual para fazer política. Logo, deixa de existir paridade de armas na disputa eleitoral, o que gera a tendência de manutenção no Congresso de quem já tem mandato, reduzindo o rodízio dos cargos políticos, que é a essência da república e afeta a qualidade da democracia. Predominam reeleições ou eleições dentro do mesmo clã, o que dá na mesma.
Muito mais poderia ser dito, mas temo me alongar e fazer com que você, caro leitor ou leitora, abandone a leitura do texto. Como você é inteligente, já entendeu tudo.
Isso lembra o ditado: quem coloca o guizo no pescoço do gato, a fim de sanear o problema? Poderia ser o STF, mas penso ser difícil que o faça, em face das ameaças de impeachment de seus ministros, sempre presente no esgarçamento das relações entre os Poderes.
Vejam quanto mal uma norma como essa pode trazer a um país. Estamos presos a essa dependência de trajetória iniciada por um ex-presidiário, Eduardo Cunha, que presidia a Câmara dos Deputados à época da aprovação da EC 86/2015. E assim se passaram dez anos, como no bolero cantado por Gal Costa, quando diz que “… o resto desse romance só sabe Deus…”
Fernando Facury Scaff
é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff – Advogados.
Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 25 de março de 2025.