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20/07/21

CONJUR: As emendas parlamentares na LDO/22 e a paridade de armas eleitoral

Por Fernando Facury Scaff*

Platão afirmava que “o maior castigo para quem se furta à obrigação de governar é vir a ser governado por alguém pior do que ele”[1]. Para que o caro leitor, pessoa correta e plena de boas intenções, possa se candidatar a governar este país em qualquer cargo eletivo, é necessário que haja paridade de armas, isto é, que se possa ter iguais chances eleitorais na disputa que ocorrerá em 2022. E um dos aspectos importantes nessa disputa é a questão do financiamento das campanhas, o que denomino de Direito Financeiro Eleitoral.

O Congresso aprovou dia 15 de julho a Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2022 (LDO), que aguarda sanção do presidente da República. Trata-se de uma norma anual, sem a qual o Congresso sequer pode entrar em recesso (artigo 57, parágrafo 2, da Constituição), e que, além de orientar a elaboração da Lei Orçamentária Anual (LOA), contêm muitas determinações importantíssimas para a condução das políticas públicas governamentais.

No texto está previsto que teremos déficit fiscal (déficit primário, que corresponde a receitas menos despesas e gastos com o pagamento de juros e o serviço da dívida pública) de até R$ 170,47 bilhões para a União (além de R$ 4,42 bilhões para as estatais e R$ 2,6 bilhões para estados e municípios, somando R$ 177,5 bilhões).

Só essa informação aponta que estamos no fundo do poço e à procura de um alçapão para seguir afundando, o que pode ser comprovado por dois outros aspectos, aos quais me cingirei neste texto: foi aprovado, embora falte ser sancionado, (1) o aumento do valor destinado ao Fundo para o financiamento de campanhas eleitorais, que foi de R$ 1,9 bilhões para as eleições municipais de 2020, para R$ 5,7 bilhões para as eleições gerais de 2022, e (2) foram mantidas diversas formas de emendas parlamentares (de bancada, de relator etc.), de modo a favorecer a eleição de políticos da base de apoio ao governo, com reduzida possibilidade de controle e fiscalização por parte do Tribunal de Contas da União. Vamos a eles.

Quanto ao Fundo, me alinho com quem entende ser adequado o financiamento público de campanhas, acrescido de algum mecanismo privado suplementar, a fim de permitir paridade de armas eleitorais, pois teoricamente permite que todos tenham algum dinheiro para custear suas campanhas, sem ficar com pires na mão pedindo dinheiro aos poderosos de plantão e se tornando refém de seus interesses.

Claro que para isso funcionar é necessário que os diversos partidos sejam geridos de forma democrática, a fim de permitir que a partilha desses recursos atenda aos interesses daqueles que possuem alguma identidade ideológica – isto é, se constituam em um verdadeiro partido político. Ocorre que no Brasil isso não existe, pois os partidos possuem “donos”, com nome e sobrenome, facilmente identificáveis em cada agremiação, esteja a direita ou a esquerda do espectro político. Logo, a fórmula de financiamento público das campanhas, que é teoricamente positiva, não funcionará a contento no país enquanto se mantiver a lógica privada dos partidos políticos sem qualquer controle público (artigo 17, parágrafo 2º, da Constituição – assunto que merece análise em outro texto).

Ao lado do financiamento público deve haver a possibilidade de financiamento privado, não da forma atual (já comentada aqui, com foco nas eleições municipais de 2016). Deve ser estabelecido um teto individual de doações, algo como até R$ 10 mil por pessoa física ou jurídica.

O fato é que, sob qualquer ótica, é um acinte multiplicar esse Fundo em 300% em um país pobre e cada vez mais empobrecido pela pandemia. Trata-se de um erro crasso e um desperdício de recursos que poderiam ser melhor utilizados. Estamos aumentamos nosso déficit em vão, ao invés de centrarmos atenção em combater o fosso da desigualdade social, cada vez mais ampliado. Tal opção política retirará recursos de obras, saúde, educação e outros gastos relevantes.

No início de 2020, o presidente Bolsonaro era contra esse Fundo – tudo indica que mudou de opinião na ânsia de manutenção de sua base de apoio no Congresso, que tanto benefício lhe vem trazendo. A conferir.

Passemos ao segundo tópico, o bloco das emendas parlamentares. Nesse pacote existem diversas situações, com escopos absolutamente diferentes. Umas são louváveis e outras são lamentáveis. É necessário distinguir o joio do trigo.

Existem as emendas parlamentares individuais (artigo 166, parágrafos 9º e 11, da Constituição), que são apresentadas por cada um dos 594 congressistas. Reportagem de Thiago Resende e Danielle Brant para a Folha de S.Paulo indica que cada qual pode apresentar até 25 emendas no valor de R$ 16,3 milhões por parlamentar (valor referente ao Orçamento de 2021), e que pelo menos metade desse dinheiro tem de ir para a saúde. Por serem impositivas, o Poder Executivo terá que adotá-las seja o parlamentar de sua base de apoio ou de oposição ao governo, o que as torna até louváveis, pois permitem atender às reivindicações de sua base eleitoral. A ressalva fica por conta do desequilíbrio na paridade de armas acima referida, pois quem não é parlamentar e desejar se candidatar já terá menos recursos para gastar.

Existem ainda as emendas coletivas (artigo 166, parágrafo 12, da Constituição), subdivididas em emendas de bancadas estaduais e emendas de comissões permanentes (da Câmara, do Senado e mistas, do Congresso) e igualmente impositivas (artigo 166-A da Constituição). Estas também parecem adequadas, pois permitem que certos blocos parlamentares se unam para reivindicar gastos de maior amplitude do que os individualmente estabelecidos. Para 2021, foram alocados R$ 7 bilhões para esse tipo de gastos, depois de um vai-e-vem entre vetos e rejeição de vetos entre Executivo e Legislativo, manobra usada para burlar a Lei de Responsabilidade Fiscal, como já expus (ler aqui).

O problema dessas emendas coletivas fica por conta (1) da possibilidade de o ente federado destinatário poder receber estes valores, mesmo estando em cadastro de inadimplentes (artigo 166, parágrafo 16, da Constituição), (2) da efetiva deliberação democrática em sua determinação, (3) apresentam uma dinâmica peculiar, que dificulta fortemente seu controle, pois os valores são repassados diretamente ao Poder Executivo dos entes federados, independente de celebração de convênios ou instrumentos assemelhados (artigo 166-A, parágrafo 2, I e III, Constituição), e ainda serão (4) vinculadas à programação estabelecida na emenda parlamentar, o que reduz a autonomia desses entes (artigo 166-A, parágrafo 4º, da Constituição), (5) além da ressalva do desequilíbrio da paridade de armas. Todavia, norma constitucional determina que sejam observados “critérios objetivos e imparciais e que atendam de forma igualitária e impessoal às emendas apresentadas, independentemente da autoria” (artigo 166, parágrafo 19, da Constituição), o que é positivo, caso efetivado. O Partido Novo propôs a ADI 6.786, distribuída ao ministro Dias Toffoli questionando estas emendas.

O problema espinhoso ocorre nas emendas do relator-geral do Orçamento. Estas não possuem amparo constitucional e se constituem em um desvio absolutamente perigoso no âmbito eleitoral. As emendas do relator geral, conhecidas no orçamento pelo código RP9, são divididas politicamente apenas entre parlamentares alinhados ao presidente. Para usar uma linguagem bíblica, aqui está o joio, sem o trigo. Tais emendas existem apenas para comprar apoio parlamentar no Congresso e vem sendo usadas de forma a dificultar o controle por parte do TCU e outros órgãos de controle. Consta que em 2021 foram alocados R$ 35 bilhões para estas emendas.

Diversas reportagens de Breno Pires foram publicadas no jornal O Estado de S. Paulo a respeito, sob o título de orçamento secreto. Uma dessas reportagens destaca que uma parte dos R$ 35 bilhões (R$ 2,1 bilhões) foi para gastos em saúde, o que aparentemente é positivo – não fosse um detalhe: a escolha dos locais coincide com o dos parlamentares que apoiam o governo. O mesmo ocorreu com a verba utilizada para a compra de tratores para parlamentares aliados, que ficou conhecido como “tratoraço”.

Aqui o problema se torna mais agudo, como se vê do relatório do ministro Walton Alencar Rodrigues, do TCU, que em 2021 aprovou as contas de 2020 do governo Bolsonaro, ao mencionar “não haver uniformização de procedimentos para a distribuição ou alocação de despesas suportadas com recursos advindos de emendas RP-9”, recomendando a adoção de mecanismos mais transparentes e racionais de alocação desses recursos.

Na LDO de 2022, foram alocados R$ 17 bilhões para estas emendas. Caso sancionado esse gasto, o que será feito pelos incumbidos de controlar o Poder Executivo: o TCU e o STF? Aguardarão que novas eleições se realizem e toda essa dinheirama seja utilizada para macular a paridade de armas eleitoral? O princípio republicano[2] impede isso e pode ser utilizado para barrá-las – já foi pleiteada pelo deputado Alessandro Molon medida cautelar no TCU nesse sentido, e o Ministério Público de Contas junto ao TCU está atento a tais movimentações.

A seguir nesta toada, nossa democracia se tornará cada vez mais uma oligarquia, governo dos que possuem dinheiro (para usar o termo técnico: plutocracia), com uma característica que nem os filósofos gregos haviam pensado: o sistema se sustenta eleitoralmente com o uso do dinheiro público.

É o Brasil inovando na filosofia política.

[1] A República. Tradução Carlos Alberto Nunes. Belém: Universidade Federal do Pará, 1976. p. 70 (Livro I, 347-c).

[2] SCAFF, Fernando Facury. Orçamento Republicano e Liberdade Igual, Ed. Fórum, 2018.

 

Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff Advogados.

 

Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 20 de julho de 2021.