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15/03/22
Por Fernando Facury Scaff*
Em 1994 foi instituído o Plano Real, que acabou com a hiperinflação brasileira. Para os que não viveram aqueles tempos, basta lembrar que apenas no mês de março de 1990 foi apurada inflação de 80%. Entre 1980 e 1994 a inflação foi de 13 trilhões por cento! Inflação e correção monetária conviviam dia e noite naquele tempo.
Inflação é a perda de valor da moeda e é sentida no bolso das pessoas através da alta do custo de vida; já a correção monetária surgiu como uma forma de compensar (repor) a perda de valor aquisitivo da moeda, corrigindo o preço dos bens e serviços — a correção monetária era um instrumento para combater os efeitos da inflação. Essa relação entre aumentos inflacionários e reposição de valor através da correção monetária acabou por gerar uma espécie de efeito em cadeia, de modo que um (a inflação) reciprocamente alimentava o outro (a correção monetária). Exatamente por isso que o Plano Real, através da URV (Unidade Real de Valor), promoveu uma hiperindexação da economia que acabou com a inflação e obteve êxito na criação de uma nova moeda, o Real.
Ocorre que infelizmente a inflação voltou. Nos últimos 12 meses a inflação calculada pelo IPCA ficou em 10,54% e a calculada pelo INPC ficou em 10,6% — praticamente um empate.
Qual o impacto disso no balanço das empresas, já que está vedada a utilização de correção monetária no balanço das empresas (parágrafo único do art. 4°, Lei n° 9.249/95)?
Texto de Edison Fernandes indica que, se a empresa tiver muitos valores a receber, a inflação gerará uma perda; e se, ao contrário, tiver muitos valores a pagar, a inflação gerará um ganho, porque a dívida perderá seu real valor, gerando o que se chamava de lucro inflacionário.
Por outro lado, utilizava-se a correção monetária sobre o balanço das empresas basicamente sobre (1) o ativo permanente (investimento, imobilizado e intangível) e (2) o patrimônio líquido. Corrigir o ativo permanente geraria como contrapartida uma receita de correção monetária de balanço. Corrigir o patrimônio líquido, acarretaria uma despesa de correção monetária de balanço. Isso poderia gerar lucro (no caso de ativo permanente superior ao patrimônio líquido) ou perda (no caso de ativo permanente inferior ao patrimônio líquido).
Pode parecer que o resultado seria neutro, pois a se computar de um lado ou de outro, o impacto seria idêntico. Todavia, não é o que apontam estudos de Ariovaldo dos Santos e Eliseu Martins, ambos professores da FEA-USP, em reportagem veiculada pelo jornal Valor Econômico de 1º de fevereiro de 2022 (pág. B2). Considerando uma inflação de apenas 4,5% em seus cálculos, indicam que empresas financeiras, como o Itaú e o Banco do Brasil, teriam redução de 20% em seus lucros, e que, em empresas não-financeiras os impactos seriam variados, segundo a posição do balanço de cada qual, como no caso de Magazine Luiza ou Movida. De todo modo, não haveria neutralidade, pois seriam gerados resultados distintos na contabilidade das empresas, segundo os dois professores.
Outro dos diversos aspectos acerca desse assunto diz respeito à venda de participações societárias decorrentes de permutas, pois, quando forem efetivamente realizadas, haverá incidência de Imposto de Renda sobre os ganhos de capital, apurados pela diferença entre o valor das ações/quotas no momento da venda e aquele em que se realizou a permuta. O efeito da inflação nessa operação será significativo, pois o valor original está “congelado” desde a permuta, ou mesmo antes dela. Se não for aplicada alguma correção monetária se tributará parte do patrimônio, e não apenas os ganhos de capital, infringindo a norma constitucional que veda a utilização de tributo com efeito confiscatório, o que certamente gerará judicialização.
Os efeitos são ainda mais visíveis nos contratos de médio/longo prazo, com os devedores se beneficiando da inflação, mesmo que de forma involuntária.
É imprescindível que sejam adotadas medidas para reverter esta situação, pois, segundo reportagem do jornal Valor Econômico por ocasião da celebração dos 27 anos do Plano Real, o valor de R$ 1 em julho de 1994 equivaleria em julho de 2021 a R$ 6,70, o que corresponde a um aumento de 570%. Fazendo a conta ao contrário, informa o texto, aquele R$ 1 de julho de 1994 equivaleriam a cerca de R$ 0,15 em julho de 2021. E isso sem computar a recente aceleração de julho de 2021 para cá.
Octávio Gouveia de Bulhões foi um dos pais da criação da correção monetária em 1964, em conjunto com Roberto Campos, ambos liberais de carteirinha. Logo após o Plano Real, em julho de 1995, foi perguntado a Roberto Campos se seria possível uma economia totalmente desindexada. Resposta: “É possível, se inexistir inflação”.
O retorno da inflação é uma lástima e uma perversidade que ressurge no horizonte. Deve-se trabalhar para conter a inflação — será que os liberais que hoje estão no governo conseguirão? —, mas também deve-se ter os olhos voltados para as inconstitucionalidades que seus efeitos geram, seja para quem detém ativos (capital) ou apenas sua força de trabalho.
Não tarda e serão propostas ações judiciais tentando reverter esses prejuízos.
Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.
Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 21 de março de 2022.