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31/08/21
Por Fernando Facury Scaff*
Cometer um crime é algo que viola as normas de boa conduta estabelecidas pela sociedade através da legalidade. Existem diversas condutas tipificadas como crime, sendo uma delas a de extorsão mediante sequestro, descrita no artigo 159 do Código Penal como “sequestrar pessoa com o fim de obter, para si ou para outrem, qualquer vantagem, como condição ou preço do resgate”. Trata-se de um crime contra o patrimônio, que ocorre quando uma pessoa restringe a liberdade de alguém, com a finalidade de obter algum tipo de vantagem para si ou para terceiros, exigindo para a libertação que certa condição seja cumprida ou pago o resgate.
Uso o tipo penal acima descrito para expor o que ocorreu na tramitação da LDO/2022 (Lei 14.194/21), embora saiba que o Código Penal não poderá ser aplicado, pois, a despeito de haver tentativas de flexibilização dos tipos penais, como aponta Ana Elisa Bechara[1], constato que os limites da legalidade não permitem criminalizar os fatos financeiros que irei relatar.
Vamos ao contexto. O Congresso aprovou o Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2022 (PLDO/22) que foi encaminhado para sanção do presidente da República. Nele constavam, dentre diversas determinações financeiras, dois itens que geraram acalorados debates pela mídia: (1) alocação de R$ 5,7 bilhões para um Fundo Eleitoral, visando custear as eleições gerais que ocorrerão em 2022, nas quais 1.628 mandatos políticos estarão em disputa e (2) um montante indeterminado de verbas para emendas de relator (RP9), que para 2021 foram orçadas em R$ 35 bilhões.
Ao sancionar o projeto de lei, transformando-o na LDO para 2022 (Lei 14.194/21), foi vetado o valor destinado ao Fundo Eleitoral e mantidas as RP9.
Dentre as inúmeras funções da LDO existe a de orientar a elaboração do Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA), que deve ser enviado pelo presidente da República esta semana ao Congresso Nacional. Veremos então o valor que será determinado para o Fundo Eleitoral e para as RP9.
Esse quebra-cabeças financeiro na elaboração do Projeto de Lei Orçamentária se torna ainda mais complexo em razão de outros valores que obrigatoriamente devem ser incluídos como despesa, como os precatórios que o Poder Judiciário administra para pagamento dos credores da União. A complexidade se torna mais aguda quando outros gastos são apresentados para serem incluídos no orçamento, como a proposta de turbinar o valor do Bolsa Família para 2022, que, embora não seja um gasto obrigatório, é cada vez mais necessário. E tudo isso explode em face da regra do teto de gastos, estabelecida pela EC 95/16, que impede que a União gaste mais do que no ano anterior, acrescido do IPCA, mesmo que haja dinheiro em caixa.
Logo, não se trata de um dilema de receita versus despesa, mas de um dilema despesa do ano anterior versus despesa do ano posterior, valor acrescido da correção inflacionária. Isso aponta para escolhas difíceis, também conhecidas como escolhas trágicas, na determinação da Lei Orçamentária para 2022.
Onde está o problema?
Ao vetar o Fundo Eleitoral, o presidente impede que sejam destinadas verbas para que os partidos custeiem as campanhas de seus candidatos, as quais devem ser distribuídas de modo proporcional ao tamanho das bancadas na Câmara. Embora 32 partidos políticos sejam beneficiados, a maior parte dos recursos vai para o PT, seguido de perto pelo PSL e, na sequência, pelo MDP, PP e PSD, até esgotar. Ou seja, os recursos do Fundo Eleitoral vão ser distribuídos para partidos aliados do presidente e para a oposição, na proporção de suas bancadas na Câmara. Em síntese: esse dinheiro financiará as candidaturas de oposição, e isso causa desgosto ao presidente.
Ao não vetar as RP9, as emendas de relator, o presidente preserva tinta em sua caneta para distribuir dinheiro apenas aos parlamentares que são seus aliados, violando a isonomia que o Fundo Partidário impõe.
Esses fatos, em tempos normais, levariam a PGR a agir, tentando impedir esse descarado financiamento reeleitoral, mas não estamos em temos normais.
Pois bem, onde está o sequestro e a extorsão financeira?
O sequestro está no veto ao valor do Fundo Partidário, que é isonômico e permite financiar a democracia, inclusive as candidaturas contrárias aos interesses do presidente; está também na tibieza para inclusão de recursos para turbinar o necessário Bolsa Família; está também na PEC do Calote dos Precatórios, que prejudicará milhares de credores. A lista poderia ser ampliada.
E a extorsão está na manutenção das cômodas e eleitorais RP9, que permitirão ao presidente e sua base de apoio usar os recursos públicos, orçamentários, para financiar sua reeleição (um panorama dessas RP9, emendas de relator, pode ser visto aqui).
Neste contexto, os projetos de reforma tributária funcionam como singela cortina de fumaça, pois irrelevantes em face do problema descrito, que não é falta de dinheiro, mas o limite do teto de gastos.
Élida Graziane Pinto, com argumentação distinta, vem apontando esse problema.
Concordo plenamente com Ana Elisa Bechara em seu alerta contra as flexibilizações da legalidade criminal, a qual deve ser “insusceptível de qualquer juízo de balanceamento pragmático” (pág. 157) — o que demonstra respeito ao Estado de Direito. Todavia, é necessário reconhecer que a conduta financeira descrita se ajusta de modo (quase) perfeito ao tipo previsto no artigo 159 do Código Penal.
Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff Advogados.
Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 31 de agosto de 2021.