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14/09/21
Por Fernando Facury Scaff*
É uma verdade inconteste que governar é eleger prioridades. Quando o presidente Bolsonaro diz que tem idiotas que preferem comprar feijão a fuzil , ele demonstra uma prioridade de seu governo. O mesmo acontece quando o ministro da Economia do governo Bolsonaro apoia uma tributação igual para o consumo do feijão e do avião.
Outra prioridade vem sendo a de dar calote nos precatórios a serem pagos em 2022, o que tem sido objeto de repúdio generalizado, conforme exposto por Renato Silveira nesta ConJur. Nesse aspecto, o foco tem sido a PEC 23/21, que veicula um monte de barbaridades jurídicas, que já tive a oportunidade de comentar. Espero que o destino desta PEC seja um fundo, bem profundo, de uma distante gaveta — e quiçá seu arquivamento definitivo.
O fato é que, goste-se ou não, as frases acima apontam para as prioridades do atual governo federal, que, em uma contagem regressiva, ainda tem 15 meses de mandato — já teve 48 meses e pode ter outros 48 se vencer as eleições de 2022 — a conferir nas urnas eletrônicas, pois outras não haverá.
É neste ponto que surgem algumas luzes no fim do túnel dos precatórios.
Uma delas vem da análise de Felipe Salto, profícuo Diretor Executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), que a expôs no 45º encontro da Mesa de Debates do Instituto Brasileiro de Direito Financeiro (IBDF). Em síntese: os precatórios que são “mais onerosos” em 2022 são os que alguns Estados têm a receber da União, acerca de verbas do Fundef que não foram corretamente repassadas. Felipe aponta que o Fundef e Fundeb cumprem a mesma função e que o primeiro foi sucedido pelo segundo. Logo, como as verbas do Fundeb estão expressamente “fora do teto” (artigo 107, parágrafo 6º, I, ADCT), também estariam “fora do teto” as verbas do Fundef, inclusive seus precatórios. Com isso, os demais precatórios ficariam “sob o teto” e, por representarem um valor menor, permitiriam que o Congresso e o governo Bolsonaro escolhessem as demais prioridades orçamentárias.
Este raciocínio é pertinente e correto, e resolve o problema do ano de 2022. O problema está exatamente neste ponto: ele só resolve o problema do ano de 2022. Como ficam os demais anos, se a emenda do Teto de Gastos vigorará por 20 anos (artigo 106, ADCT)?
Aqui surge outra luz no fim do túnel, que é uma PEC proposta pelo deputado amazonense Marcelo Ramos, atual vice-presidente da Câmara dos Deputados. O texto é singelo e tenta resolver o problema a longo prazo, não apenas para o ano de 2022. A ideia é acrescer um novo inciso ao parágrafo 6º do artigo 107, ADCT, afastando do teto as “despesas com pagamento de precatórios judiciais e requisições de pequeno valor de que trata o artigo 100 da Constituição Federal”.
Será tal PEC uma espécie de “fura teto”?
Não me parece furar o teto por dois motivos.
Primeiro: a lógica do teto é criar freios para os gastos públicos administráveis pelo Poder Executivo. Os precatórios não se configuram como gastos administráveis pelo Poder Executivo, uma vez que decorrem de gastos ordenados pelo Poder Judiciário, fruto de decisões transitadas em julgado. Logo, o valor neste ano pode ser de X, no ano seguinte ser de 3X e no ano posterior ser de ½ X. Ou seja, os precatórios são gastos inadministráveis pelo Poder Executivo, conforme expus em texto acadêmico, denominando-os de cláusulas pétreas orçamentárias (não confundir com as cláusulas pétreas do artigo 60, §4º, CF) [1]. Com isso, o problema fica resolvido pelos próximos anos.
Segundo: consta da PEC um artigo que impede a retroação do cálculo, o que poderia permitir que os gastos passados viessem a ser recalculados — seria uma lástima. Ao impedir a retroação a norma explicitamente determina uma espécie de recálculo para o futuro, isto é, retira-se o montante de precatórios na origem, criando um “novo teto” que deverá seguir as regras em vigor a partir do próximo ano. Desta forma, o montante de precatórios será expurgado na origem e o valor será seguido a partir de agora, sem efeitos retroativos, e sem afetar a mecânica do “Teto de Gastos”.
Gostei da solução proposta pelo deputado Marcelo Ramos, pois resolve o problema em definitivo. Afinal, o amor do mercado pelo Teto de Gastos não é imortal, mas é “infinito enquanto dure”, como escreveu Moraes (o Vinicius, e não o Alexandre — que fique bem claro).
Mesmo assim, sugiro um adendo à essa PEC, bem na linha do governar é eleger prioridades. Proponho que essa folga orçamentária seja expressamente usada para atribuir mais recursos aos gastos sociais, em especial com saúde e educação, limitados que estão pelo artigo 110, ADCT. E que isso sirva não só para 2022, mas enquanto perdurar o teto.
Fica a sugestão de acrescer um artigo nesse sentido, demonstrando quais as verdadeiras prioridades para nosso país.
Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff Advogados.
Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 14 de setembro de 2021.