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08/07/24

CONJUR: Incidência do imposto seletivo sobre bens minerais e sua exportação

Fernando Facury Scaff 

O IS (Imposto Seletivo) foi instituído pela EC 132/23 e se propõe que incida sobre a extração de bens minerais que sejam danosos ao meio ambiente. Ocorre que a norma constitucional aprovada não permite sua incidência sobre a exportação de bens minerais. Além disso, observando o PLP 68, verifica-se que a proposta de tributar o minério de ferro está em descompasso com a Constituição, pois este bem mineral não faz mal à saúde e nem ao meio ambiente.

A interpretação jurídica deve ser despregada da intenção do legislador, sendo esta utilizada apenas como um dos diversos métodos indicativos da busca do seu sentido. Para bem compreender seu alcance, é necessário analisar os textos jurídicos, o que foi aprovado pela EC 132/23, e o que está sendo proposto pelo PLP 68.

Iniciemos pela análise constitucional. A EC 132 inseriu o inciso VIII ao artigo 153, atribuindo competência à União para instituir o Imposto Seletivo sobre a “produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, nos termos de lei complementar”.

Ao artigo 153 foi inserido o §6º e o inciso VII, onde consta que, “na extração, o imposto será cobrado independentemente da destinação, caso em que a alíquota máxima corresponderá a 1% do valor de mercado do produto”.

Esta frase “independente da destinação” vem criando muita celeuma, tendo sido entendido pelo Poder Executivo da União, responsável pela elaboração do Projeto de Lei Complementar 68, que se trata de destinação territorial, embora o texto não contenha essa determinação expressa, o que tem levado muitos comentaristas à erro.

Melhor analisando, a palavra destinação pode significar tanto “direção, destino, rumo, caminho, rota, orientação, curso, trilho, meta”, quanto pode significar “finalidade ou serventia”, no sentido de “fim, objetivo, propósito, aplicação, emprego, uso, efeito, desígnio”. Nesse sentido, utilizar a expressão “destinação” no sentido unívoco de “destinação territorial”, é deveras apressado, sendo possível interpretar a palavra “destinação” no sentido de “finalidade ou serventia”, como exposto.

Logo, sendo o texto plurívoco, e não unívoco quanto à palavra “destinação”, como solucionar juridicamente essa diversidade de sentidos? Resposta: respeitando a Constituição, na qual foi inserido no artigo 153, o §6º, inciso I, onde consta que o IS: “não incidirá sobre as exportações”.

Assim, para dar consistência e coerência à interpretação desse texto o sentido da expressão “destinação” deve ser lido de forma interconectada com todo o texto normativo aprovado, incluindo o inciso I, do mesmo artigo e parágrafo, que veda a incidência do IS sobre toda e qualquer exportação.

Com isso, a interpretação constitucional adequada para a expressão “destinação” é no sentido de que se refira à “finalidade ou serventia” e não à “territorialidade”, com respeito à Constituição.

Sendo assim, qual o sentido de ‘destinação’ enquanto ‘finalidade ou serventia’?
Sabe-se que os bens minerais são utilizados em distintas finalidades ou serventias. Sem esgotar o rol, identificam-se bens minerais que são utilizados na construção civil (areia, brita, calcário, granito, mármore), na indústria metalúrgica (minério de ferro, bauxita, cobre), na indústria energética (carvão mineral, urânio), na indústria química (enxofre, sal-gema), na indústria eletrônica (silício, lítio, tântalo), na indústria de vidro e cerâmica (areia silicosa, argilas), na indústria farmacêutica e cosmética (talco, caulim), na indústria de joalheria e objetos de luxo (ouro, prata, platina, diamantes, esmeraldas e outras pedras preciosas), na agricultura (fosfato, potássio, calcário agrícola), na indústria automobilística (a aço e alumínio, platina, paládio, ródio), dentre várias outras.

Sendo assim, a interpretação coerente e consistente da norma constante do artigo 153, §6º, VII, é no sentido de que o IS incidirá na extração, sendo cobrado independentemente da finalidade ou de sua serventia, com a alíquota máxima de 1% do valor de mercado do produto, vedada sua incidência na exportação, conforme o inciso I do mesmo artigo e parágrafo — todos inseridos na Constituição pela EC 132.

Tal interpretação jurídica se coaduna com a lógica econômica, que considera a exportação de tributos um procedimento nefasto para qualquer país e para o comércio internacional. Além disso, a tributação das exportações não teve lugar em nosso país e é contra a regra geral que comanda as relações tributárias durante a vigência da CF/88, o que se destaca pelo advento da Lei Kandir (LC 86/95), e pela constatação de que a imunidade tributária nas exportações tem por fundamento o princípio do país do destino, o que determina a exoneração do ônus tributário do produto/mercadoria com destino ao exterior (Lucas Bevilacqua. Incentivos Fiscais às exportações. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2018).

Logo, é incongruente e inconsistente a interpretação de que a Constituição contempla a possibilidade de incidência do IS na exportação de bens minerais.

Ultrapassada a fase da interpretação constitucional, passa-se à análise do PLP 68, em debate no Congresso.

Lê-se nos itens 264 e 265 de sua Exposição de Motivos, sob o título “Tributação sobre bens minerais extraídos”, que “o Projeto propõe a incidência do IS sobre a extração de minério de ferro, de petróleo e de gás natural. A proposta prevê a incidência do IS na primeira comercialização pela empresa extrativista, ainda que o minério tenha como finalidade a exportação”.

Isso espelha o que consta do art. 393 do PLP 68: “Fica instituído o Imposto Seletivo – IS, de que trata o inciso VIII do art. 153 da Constituição Federal, incidente sobre a produção, extração, comercialização ou importação de bens prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente”. E no Anexo XVIII consta apenas o minério de ferro como o único bem mineral a ser tributado pelo IS.

Cabe a pergunta: o bem mineral ferro é prejudicial à saúde ou ao meio ambiente?
A pergunta não é destituída de propósito. A redação do artigo 153, VIII é clara ao determinar a incidência do IS sobre “bens” que sejam “prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente”. Logo, o foco da norma é o “bem”, no caso o minério de ferro, e não a “atividade” de produção mineral.

Pode-se argumentar que a atividade de produção mineral é danosa ao meio ambiente, muito em face dos lamentáveis desastres ambientais ocorridos nos últimos anos, que se constituem em pontos isolados na trajetória da produção mineral ao longo de séculos neste país, mas dizer que o bem minério de ferro faz mal ao meio ambiente ou à saúde é um completo e arrematado despropósito.

O que o PLP 68 pretende é tributar a atividade produtiva do minério de ferro, o que é substancialmente contra o que determina a Constituição, alterada pela EC 132, da reforma tributária, nos artigos e incisos acima transcritos. O texto da norma constitucional é delimitado: a incidência é sobre o bem, e não sobre a atividade.

O foco da norma constitucional são os bens minerais que fazem mal à saúde, tais como o asbesto (amianto), utilizado em construção e isolamento, que pode causar doenças pulmonares graves; o chumbo, que pode causar anemia e problemas renais; o mercúrio, usado na mineração de ouro, que pode causar danos ao sistema nervoso central, rins e outros órgãos; o arsênio, utilizado em alguns pesticidas, que pode causar câncer de pele, pulmão, bexiga e outros problemas de saúde; o cádmio, usado em baterias, que pode levar a danos renais, problemas ósseos e câncer; o urânio, utilizado em energia nuclear, que em sua forma radioativa, pode causar danos ao fígado e rins, bem como aumentar o risco de câncer, dentre outros minérios.

O texto da norma constitucional é delimitado: a incidência é sobre o bem, e não sobre a atividade.

É irônico, para dizer o mínimo, que o PLP 68 que busca regulamentar a reforma tributária esteja desde logo propondo descumprir a EC 132/23, que aprovou no âmbito constitucional a reforma tributária. Isso é apenas o começo.

Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.

Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 08 de julho de 2024.