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24/05/22
Por Fernando Facury Scaff*
Para que haja efetiva independência do Poder Judiciário, é indispensável assegurar sua autonomia financeira, atribuindo-lhe fontes de recursos suficientes para sua manutenção e também para sua expansão, que é necessária em face do crescente grau de litigiosidade que acomete nossa sociedade, de modo a permitir que todos tenham acesso a uma prestação jurisdicional célere e de qualidade. Só com um Poder Judiciário independente e autônomo financeiramente é que se pode ter um Estado de Direito, que seja social e democrático[1].
A Constituição brasileira de 1988 determina que “são poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário” (artigo 3º), não podendo ser objeto de deliberação nem mesmo a proposta de emenda constitucional tendente a abolir a separação dos poderes (artigo 60, §4º, III), sendo assegurado ao Poder Judiciário autonomia administrativa e financeira (artigo 99, caput), que é explicitada através da determinação de entrega dos recursos correspondentes a 1/12 avos das dotações orçamentárias até o dia 20 de cada mês (artigo 168, que inclui também nesta obrigação as transferências a serem realizadas ao Poder Legislativo, ao Ministério Público e à Defensoria Pública).
Em breves palavras, a autonomia administrativa diz respeito à possibilidade de eleição de seus órgãos diretivos, elaboração de seus regimentos internos, organização de suas secretarias e serviços auxiliares e os dos juízos que lhes forem vinculados, no provimento dos cargos de magistrados de carreira da respectiva jurisdição, bem como no provimento dos cargos necessários à administração da Justiça (artigo 96, I).
A autonomia financeira é exercida através da elaboração pelo próprio Judiciário de suas propostas orçamentárias dentro dos limites estipulados conjuntamente com os demais poderes na lei de diretrizes orçamentárias anual (artigo 99, §1º), cabendo a elaboração dessa proposta, no âmbito da União, aos Presidentes do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores, com a aprovação dos respectivos tribunais, com igual correlação federativa no âmbito dos estados (artigos 99, §2º).
A proposta orçamentária do Poder Judiciário deve ser encaminhada ao Poder Executivo respectivo, o qual não a pode alterar, exceto se estiver em desconformidade com a lei de diretrizes orçamentária anual. Só o Poder Legislativo, federal ou estadual, é competente para modificar a proposta enviada.
Sendo assim, uma vez aprovada a lei orçamentária anual, os repasses financeiros ao Poder Judiciário ocorrerão até o dia 20 de cada mês, considerando 1/12 avos do que foi proposto (artigo 168, caput), devendo retornar ao caixa único do Tesouro os valores não utilizados mensalmente, criando assim uma espécie de conta corrente financeira entre o Poder Executivo e o Judiciário (artigo 168, §2º, recentemente acrescido à Constituição pela Emenda Constitucional 109, de 15/03/21, e adiante analisado).
Exposto o desenho financeiro que garante a autonomia do Poder Judiciário, tanto federal quanto estadual, deve-se registrar um aspecto que gerou muitas controvérsias judiciais, qual seja: o montante a ser transferido mensalmente pelo Poder Executivo ao Judiciário deve ser aquele que foi orçado, equivalente ao valor fixo que consta da lei orçamentária, ou o montante variável, que corresponde ao que foi efetivamente arrecadado, e que ingressou nos cofres públicos?
A controvérsia demonstra a importância da autonomia financeira como fonte da independência do Poder Judiciário no Estado de Direito. Se for transferido mensalmente apenas o que foi arrecadado, e não o que foi orçado, a autonomia financeira do Poder Judiciário fluirá ao sabor da conjuntura, que pode ser alterada por crises econômicas ou por renúncias fiscais concedidas pelos demais Poderes. Esse debate já foi levado ao Supremo Tribunal Federal diversas vezes, o que demonstra sua relevância.
Um dos casos mais antigos julgado pelo STF é o MS 21.291-AgR-QO, relatado pelo Ministro Celso de Mello em 12/04/1991, que diz respeito à tentativa do Poder Executivo do Estado do Rio de Janeiro em transferir ao Poder Judiciário daquele Estado apenas o que foi arrecadado e não o que foi orçado. O acórdão traz a seguinte afirmação “O autogoverno da Magistratura tem, na autonomia do Poder Judiciário, o seu fundamento essencial, que se revela verdadeira pedra angular, suporte imprescindível a asseguração da independência político-institucional dos Juízos e dos Tribunais”. “A norma inscrita no artigo 168 da Constituição reveste-se de caráter tutelar, concebida que foi para impedir o Executivo de causar, em desfavor do Judiciário, do Legislativo e do Ministério Público um estado de subordinação financeira que comprometesse, pela gestão arbitrária do orçamento — ou, até mesmo, pela injusta recusa de liberar os recursos nele consignados —, a própria independência político-jurídica daquelas Instituições.”
Outro caso importante julgado pelo STF foi o MS 21.540, envolvendo o Estado de Mato Grosso, julgado em 08/04/1992, de relatoria do Ministro Octávio Galotti, cuja ementa traz a seguinte afirmação: “Repasse duodecimal determinado no artigo 168 da Constituição. Garantia de independência, que não está sujeita a programação financeira e ao fluxo da arrecadação. Configura, ao invés, uma ordem de distribuição prioritária (não somente equitativa) de satisfação das dotações orçamentárias, consignadas ao Poder Judiciário”.
Outro precedente importante no STF se verifica no MS 22.384, com pertinência ao estado de Goiás, de relatoria do ministro Sydney Sanches, julgado em 14/08/1997, também envolvendo a ausência dos repasses orçamentários entre os Poderes, na qual foi determinado que o Poder Executivo estadual efetivasse “o repasse dos duodécimos, tanto dos que se venceram no curso do processo, quanto dos que se vencerem até o final de seu mandato, sempre até o dia 20 de cada mês”.
Em 3/4/2003, através de relatoria do ministro Gilmar Mendes, o STF julgou o MS 23.267, relativo ao estado de Santa Catarina que estava atrasando os repasses mensais ao Poder Judiciário estadual, tendo sido decidido que tais transferências deveriam ser realizadas de imediato, independentemente do fluxo da arrecadação. Mais recentemente, em 30/10/2012, o STF julgou o MS 31.671-MC, relatado pelo Ministro Ricardo Lewandowski, envolvendo o estado do Rio Grande do Norte, seguindo a mesma trilha, ao determinar o imediato repasse dos duodécimos previstos no orçamento.
A situação foi modificada pelo STF no MS 34.383-RJ, julgado em 22/11/2016, cujo relator foi o ministro Dias Toffoli. O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro se insurgiu contra o governador daquele Estado, que atrasava os repasses alegando queda na arrecadação. No caso, foi assegurado “ao Poder Judiciário do estado do Rio de Janeiro o direito de receber, até o dia 20 (vinte) de cada mês, em duodécimos, os recursos correspondentes às dotações orçamentárias”, porém foi “facultado ao Poder Executivo do referido Estado-membro proceder ao desconto uniforme” sobre o que foi arrecadado, “ficando ressalvada a possibilidade de compensação futura”, quando o valor arrecadado voltasse aos níveis planejados no orçamento. Este foi um caso é muito peculiar, fruto da grave crise financeira do estado do Rio de Janeiro, e foi encerrado através de acordo firmado entre o Poder Executivo e o Tribunal de Justiça daquele Estado, devidamente homologado pela unanimidade do STF. Esta decisão de 2016 impactou a jurisprudência do STF, como se verá no julgamento da ADI 2.238.
Em 22/6/20 foi finalizado o julgamento da ADI 2.238, sob relatoria do ministro Alexandre de Moraes, cujo acórdão fixou a interpretação do artigo 9º, §3º, da Lei de Responsabilidade Fiscal, de certa forma confirmando o que havia sido decidido pela homologação do acordo realizado no MS 34.383-RJ, de 2016. Foi decidido que, no caso de haver queda na arrecadação, e se o próprio Poder Judiciário não limitasse suas despesas de acordo com tal redução, haveria a possibilidade de o Poder Executivo limitar os repasses mensais ao Poder Judiciário caso a arrecadação não se concretizasse conforme o planejado na lei orçamentária aprovada, observando, porém, (1) que tal limitação ocorresse de forma linear e uniforme, não podendo penalizar um Poder em detrimento do outro; (2) que tais repasses ocorressem no dia 20 de cada mês; (3) e que, uma vez recomposta a arrecadação aos níveis orçados, as transferências também devessem ser recompostas aos montantes efetivamente aprovados na lei orçamentária. Tal decisão ocorreu por maioria de um voto no STF, vencidos os ministros Dias Toffoli, Gilmar Mendes, Roberto Barroso, Edson Fachin e Marco Aurélio.
Novo capítulo pela delimitação da autonomia financeira do Poder Judiciário surge com o acréscimo dos §§ 1º e 2º ao artigo 168 da Constituição, pela EC 109 de 2021, pelos quais foi vedada a utilização desses recursos na constituição de fundos, e criada uma espécie de conta corrente, determinando que, se os recursos repassados não forem utilizados pelo Poder Judiciário (bem como pelo Poder Legislativo, Ministério Público e Defensoria Pública) o saldo deverá ser restituído ao caixa único do Tesouro do ente federativo correspondente, ou ser deduzido das parcelas mensais seguintes. Na prática, tal norma restringe a autonomia do Poder Judiciário, pois veda a constituição de fundos ou reservas a serem utilizadas consoante a autonomia administrativa desse Poder, igualmente assegurada pela Constituição (artigo 99, caput). Como se trata de norma recente, sua constitucionalidade ainda não foi objeto de contestação perante o STF.
O fato é que em mais de três décadas de vigência da Constituição Federal, as decisões do STF confirmam que os repasses ao Poder Judiciário devem ser realizados consoante as previsões da lei orçamentária, e não consoante o montante arrecadado, podendo a flexibilização de, em caso de ocorrer queda na arrecadação, poder ser feita limitação linear e uniforme desses repasses mensais, mantida sua periodicidade, devendo ser recompostos os valores ao montante estabelecido na lei orçamentária, caso recomposta a receita.
Este entendimento foi denominado pelo ministro Alexandre de Moraes, Relator da ADI 2238, “de autonomia financeira com responsabilidade fiscal” (página 143 do acórdão), o que parece adequado e consentâneo com a realidade financeira, pois mantém a responsabilidade fiscal, uma vez que repassa o que foi efetivamente arrecadado, sem a possibilidade de discriminação ou coerção financeira entre os Poderes, e reafirma que os valores previstos na lei orçamentária anual orçados se constituem no efetivo montante a ser transferido, caso recomposta a arrecadação, garantindo a autonomia e a independência do Poder Judiciário no Brasil.
[1] Uma versão expandida dessa análise foi realizada no Parecer exarado ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul elaborado por SCAFF, Fernando Facury; SARLET, Ingo; STRECK, Lenio; CALIENDO, Paulo; MAFFINI, Rafael Da Cás: Parecer sobre autonomia financeira do Poder Judiciário em face da PEC nº 287/2020 à Constituição Estadual do Rio Grande do Sul. Revista Fórum de Direito Financeiro e Econômico – RFDFE, ano 10, n. 17, p. 19-36, mar./ ago. 2020.
Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.
Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 24 de maio de 2022.