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29/11/21

CONJUR: Limites à revogação de incentivos fiscais: o caso do Reintegra

Por Fernando Facury Scaff*

Identificar o que é uma renúncia (incentivo) fiscal é uma das questões mais tormentosas do Direito Financeiro, objeto de diversos estudos. José Maria Arruda de Andrade já escreveu nesta ConJur vários artigos sobre essa questão e já tratei da matéria em outras oportunidades (ver aqui, aqui e aqui, dentre outras).

Nesta coluna recorta-se o tema para tratar especificamente sobre os limites à revogação dos incentivos fiscais, ou seja, onde acaba uma renúncia fiscal como um favor fiscal e até onde ela se constitui em um direito do contribuinte. Até onde vai um e outro? Usarei como exemplo de análise o caso do Reintegra, que é um programa do governo federal de devolução de valores tributários para as empresas exportadoras, regido pela Lei 13.043/14. No caso, Decretos, em especial o 9.393/18, reduziram os valores a serem devolvidos. A questão é: pode isso, Arnaldo? O assunto pende de pauta no STF sob repercussão geral sob o Tema 1.108 (ARE 1.285.177).

A lógica do Reintegra é devolver parcial ou integralmente o resíduo tributário remanescente na cadeia de produção de bens exportados (Lei 13.043/14, art. 21). A norma é relevante, pois, a despeito de não haver incidência tributária na fase final da exportação, há toda uma cadeia econômica que é necessária para a produção daquele bem, sobre a qual incidem diversos tributos que acabam onerando o produto exportado. Logo, a ideia é desonerar “o resíduo tributário remanescente” desta cadeia produtiva, a fim de que os produtos se tornem menos onerosos em sua disputa nos mercados internacionais. A simples existência dessa norma indica que existem ônus fiscais na cadeia, os quais devem ser desonerados.

A norma estabelece diversos requisitos para que as empresas exportadoras recebam este crédito, mensurando-o através da aplicação de percentual que poderia variar entre 0,1% (um décimo por cento) e 3% (três por cento), admitindo-se diferenciação por bem exportado (Lei 13.043/14, art. 22). Esse crédito é usado para compensar valores devidos de Pis e Cofins.

O Decreto 8415/15 estabeleceu em 3% o valor total desses créditos, a ser apurado sobre o valor dos bens exportados. Porém, desde a edição, criou certo escalonamento temporal para gozo do crédito, que era de 1% entre 1º de março de 2015 e 31 de dezembro de 2016, e assim por diante. Através de diversos Decretos esse percentual foi sendo reduzido, até chegar a míseros 0,1% através do Decreto 9.393/18.

Sob um primeiro olhar é fácil afirmar que as sucessivas reduções de crédito efetuadas pelos Decretos estão dentro dos limites estabelecidos pela Lei, não havendo nenhuma irregularidade nisso.

Porém, a situação se torna mais complexa sob um olhar mais detalhado, uma vez que existe norma constitucional que impede que haja aumento de carga tributária no mesmo exercício (art. 150, III, “b” e art. 195, §6º, CF, que consagram o Princípio da Anterioridade). Esse é o ponto em debate no STF.

Em síntese: É possível, durante o gozo de um benefício fiscal, reduzi-lo de forma unilateral? Qual o limite para isso?

Pelo menos duas linhas de raciocínio se impõem à análise: (1) sob a ótica do Princípio da Anterioridade, acima indicado; e (2) sob a ótica do direito adquirido (art. 5º, XXXVI, CF). Ambas compõem aquilo que Heleno Taveira Torres1 e Humberto Ávila2 denominam de Princípio da Segurança Jurídica, em obras de referência, nas quais analisam os aspectos da não-surpresa, da proteção da boa-fé e da anterioridade de exercício.

Analisar essas duas diferentes linhas de raciocínio nos leva a distintas possibilidades de alcance dessa norma.

Sob a ótica do Princípio da Anterioridade a inconstitucionalidade parece clara, pois o Decreto 9.393/18 pegou de surpresa o contribuinte, onerando-o no curso do exercício fiscal. O argumento contrário, esgrimado pela União, é que esses valores não implicam em aumento ou majoração de tributo, o que é falso, pois a carga tributária efetivamente aumentou no curso do exercício, à toda prova. Se havia uma devolução de tributos no percentual de X% e, de um dia para outro, essa mesma devolução passou a ser no percentual 0,X%, obviamente houve aumento de carga tributária, o que é inconstitucional dentro do mesmo exercício fiscal. Para isso, a lógica contida na Súmula 544/STF é relevante3, embora não seja suficiente lê-la em sua literalidade, sendo necessário interpretá-la em seu contexto. O art. 150, III, “b” foi inegavelmente ferido. E o art. 178, CTN também é pertinente, a despeito de não ser norma constitucional, logo, escape à apreciação do STF.

Embora não seja igual, essa situação se assemelha à revogação antecipada da Lei do Bem, objeto de análise efetuada em conjunto com Ivan Alegretti (aqui e aqui).

Sob a ótica do direito adquirido dos exportadores ao Reintegra, que buscariam assegurar receber o mesmo percentual originalmente estabelecido, a situação é mais frágil, pois envolve questões de direito intertemporal, sem a possibilidade de limitações pelo Poder Público. Nesta hipótese, só a análise de cada situação poderia revelar casos em que esse direito teria sido adquirido em concreto por cada empresa exportadora, embora, ao que tudo indica, seja uma hipótese pouco provável, muito mais adequada a um distinguish do que a uma repercussão geral.

Enfim, sendo o Reintegra um benefício fiscal dos mais justos, amparado na suprema necessidade de obter divisas para o país — o que só se consegue através de superávits do comércio internacional, que é conduzido por empresas privadas —, existem limites para sua revogação, sob pena de violação da ordem constitucional. Priorizar o caixa público nem sempre é a melhor forma de desenvolver o país, devendo ser usada a extrafiscalidade para atingir objetivos de política econômica.

É necessário que o Poder Público assegure às empresas segurança jurídica para que os contratos possam ser firmados e cumpridos, sem surpresas que inviabilizem a existência e a perenidade das empresas. O STF deve fazer o trem voltar aos trilhos nesse assunto.

1 Torres, Heleno Taveira. Direito Constitucional Tributário e Segurança Jurídica: metódica da segurança jurídica do Sistema Constitucional Tributário. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.

2 Ávila, Humberto. Segurança jurídica: entre permanência, mudança e realização no direito tributário. 2 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2012

3 “Isenções tributárias concedidas, sob condição onerosa, não podem ser livremente suprimidas.”

Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff Advogados.

Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em  29 de novembro de 2021.