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05/08/24
Fernando Facury Scaff
O leitor ou leitora que acompanha as discussões sobre direito financeiro sabe que o STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu em 19/12/22, na ADPF 854, que o orçamento secreto não mais deveria ser secreto, devendo ser-lhe aplicada transparência total, referente a quem é o “dono” daquele recurso e para onde aquela despesa é dirigida.
Este julgamento foi por maioria, com um excelente voto vencido do ministro Edson Fachin (no seio da ADPF 850, julgada em conjunto), sendo insuficiente para coibir a irregularidade desse tipo de despesa, que permanece infringindo o princípio republicano. Ano a ano o valor alocado no orçamento migrou de despesas ordenadas individualmente para despesas ordenadas de bancadas, o que mantém o problema na pauta de debates. Trata-se de verdadeiro orçamento impositivo à brasileira, jabuticaba pátria.
Penso que um dos principais pontos a serem analisados é a questão republicana, pois esse tipo de emendas parlamentares faz com que o valor seja alocado no interesse individual dos parlamentares, e não de forma conectada às políticas públicas estabelecidas, um caso de não-planejamento.
Um exemplo esclarece: é justo que sejam destinadas verbas para o Hospital do Câncer de Barretos, em São Paulo, porém isso pode estar desconectado à política pública estadual ou municipal, que pode estar com falta de verbas para vacinação infantil — logo, nesta hipótese, o montante destinado ao hospital não estará conectado aos interesses públicos determinados pelo planejamento da ação governamental na área de saúde.
Paridade de armas
O interesse público está sendo substituído por interesses privados, frequentemente com finalidade eleitoral, o que coíbe a renovação dos parlamentos, violando a paridade de armas das disputas eleitorais.
Duas novidades surgem no horizonte para rever esse tipo de irregularidade. Uma é a audiência que será realizada no bojo da ADPF 854, determinada pelo ministro Flávio Dino; a outra é a ADI 7.688, proposta pela Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), distribuída ao ministro Gilmar Mendes.
A primeira ocorre no âmbito da ADPF 854, na qual foi realizada denúncia de permanência do orçamento secreto, o que levou o ministro Flávio Dino a determinar a realização de uma audiência de conciliação visando esclarecer alguns pontos apresentados por diversos amici curiae como a Associação Contas Abertas, a Transparência Brasil e a Transparência Internacional Brasil, o que foi objeto de recente análise por Élida Graziane Pinto. A audiência está agendada para ocorrer ainda esta semana, no dia 1º de agosto.
A segunda, referente à ADI 7.688, aguarda despacho a ser proferido pelo relator, Ministro Gilmar Mendes, tem por foco as emendas Pix, que é são aquelas em que o valor é enviado diretamente ao cofre de estados e municípios, sem que haja necessidade de apresentação de algum projeto ou indicação de área para aplicar a verba, “o que dificulta o acesso e a transparência da atividade jornalística, especialmente a capacidade de realizar investigações fundamentadas e de reportar com precisão sobre a gestão de verbas públicas”, segundo consta da petição inicial.
O cerne do pedido é de ser adotada declaração de inconstitucionalidade para que sua interpretação seja realizada conforme a Constituição, aplicando transparência a esse mecanismo.
Embora sejam assuntos diversos, os dois movimentos são correlatos, e visam atacar o nefasto instrumento do orçamento secreto.
Não há sombra de dúvidas que o Poder Legislativo deve ser o titular do orçamento, e, por consequência, da alocação dos recursos públicos, mas isso deve ser feito em prol do bem comum o que reflete o princípio republicano, adotando um orçamento que seja efetivamente republicano (e não apenas democrático), que, no âmbito da arrecadação, deve ter por base a regra de que, quem ganha mais ou possui mais bens deve pagar mais, e, no âmbito da despesa, deve ter por base que os gastos devem ser dirigidos a quem mais deles necessita.
Logo, por um lado, o da receita, o princípio orçamentário republicano busca implementar a capacidade contributiva, e, pelo lado da despesa, a busca é pela implementação da capacidade receptiva. Todavia, isso deve estar integrado no âmbito do planejamento das ações governamentais, que se refletem em políticas públicas (para a saúde, educação, lazer, saneamento etc.), e não de forma isolada e individualista.
A reserva de valor para que os parlamentares venham a estabelecer onde gastar, de forma desconectada a políticas públicas, revela um clientelismo exacerbado, que coloca nas mãos de indivíduos, ou de bancadas, o poder de gastar onde melhor lhes aprouver. Deixamos assim de ter um orçamento para o bem comum, e passamos a ter vários orçamentos individuais no seio do orçamento geral da nação.
Isso fere, de forma inegável, o que a Constituição brasileira determina, desde o artigo 1º, que estabelece ser o Brasil uma República, dentre vários outros artigos, sem a necessidade de sorteio principiológico para coibir tais irregularidades.
Seria adequado que as duas ações tramitassem em conjunto, conforme requerido na ADI 7688, onde foi solicitada distribuição por dependência. Neste momento não se sabe se isso ocorrerá, mas é uma providência necessária para evitar decisões contraditórias.
O problema do orçamento secreto não é apenas de transparência, mas de republicanismo, em muitos aspectos.
Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.
Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 30 de julho de 2024.