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29/03/22
Por Fernando Facury Scaff*
Todos sabemos que interpretar possui limites. Não se pode transformar um texto ao bel-prazer do intérprete. Como o Direito se utiliza da linguagem comum, natural, segue o mesmo parâmetro de interpretação, vinculada aos limites da ciência da norma, isto é, as normas infralegais precisam estar de acordo com o que dispõe as legais, e estas com a Constituição. Essa dogmática necessita ser seguida, consoante as múltiplas escolas interpretativas, que Lenio Streck, colunista desta Conjur, bem apresenta em seus textos.
Semana passada o ministro Roberto Barroso proferiu um voto na ADI 6.303 em que afirma: “Interpretando o artigo 113 do ADCT, este Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento de que o referido dispositivo é aplicável a todos os entes da Federação, pelo que eventual proposição legislativa federal, estadual, distrital ou municipal que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita deverá ser acompanhada de estimativa de impacto orçamentário e financeiro, sob pena de incorrer em vício de inconstitucionalidade formal”.
Este voto foi acompanhado pela unanimidade do STF, declarando inconstitucional uma lei complementar estadual de Roraima, que concedia isenção de IPVA a motos de até 160 cilindradas (ver aqui).
Lendo o artigo 113, ADCT, verifica-se o seguinte texto: “A proposição legislativa que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita deverá ser acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro”.
Se a leitura parasse nesse artigo, a interpretação estaria correta, pois nada restringe seu alcance federativo. Todavia, tal norma está estritamente vinculada ao artigo 116, ADCT, que estabelece: “Fica instituído o Novo Regime Fiscal no âmbito dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social da União, que vigorará por vinte exercícios financeiros, nos termos dos artigos 107 a 114 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias”.
Ora, estando o artigo 113, ADCT dentro do intervalo de artigos mencionados no artigo 106, ADCT, que expressamente menciona sua aplicabilidade apenas à União, só se pode interpretá-lo de forma vinculada a este ente federativo, sem alcançar estados, Distrito Federal e municípios.
Em seu voto, o ministro Barroso menciona o precedente relatado pela ministra Rosa Weber (ADI 6.074) e outro relatado pelo ministro Alexandre de Moraes (ADI 5.816), o qual já tive a oportunidade de analisar com maiores detalhes.
O ministro Barroso não se furta em afirmar em seu voto que a interpretação acima exposta não deve prosperar, pois “não se conforma com as interpretações literal, teleológica e sistemática do artigo 113, ADCT”. E alinha as razões de seu entendimento, fortemente calcado em principiologia constitucional.
Infelizmente não posso concordar com o ministro Barroso, à luz da exegese clara do texto normativo que foi acrescido à Constituição “em bloco”, através da EC 95. Estou seguro das boas intenções do ministro e do STF, pois a EC 95 deveria ter incluído os demais entes federados em seu campo de atuação, mas não o fez em razão de composições políticas da época. O STF é o órgão que julga a constitucionalidade das leis, e não um legislador. É o guardião da Constituição e não seu dono.
O que o STF fez neste caso foi interpretar a Constituição em fatias, desconsiderando o alerta feito por Eros Grau, muito antes de se tornar ministro do STF, e que ficou assente na jurisprudência da Corte na ADPF 101: “Não se interpreta o direito em tiras; não se interpreta textos normativos isoladamente, mas sim o direito, no seu todo — marcado, na dicção de Ascarelli, pelas suas premissas implícitas”.
Ao STF é dado o direito de julgar em definitivo os processos sob sua análise, mas não lhe cabe o poder de dizer o Direito, o que é mais amplo. Incumbe ao âmbito doutrinário da docência jurídica fazer a crítica de seus posicionamentos, de forma fundada e respeitosa, como a que ora faço referente a estas três decisões (ADIs 6.303, 6.074 e ADI 5.816).
Ultrapassada a crítica interpretativa, cabe a pergunta: Quando o artigo 113, ADCT virá a ser aplicado à União, ente federado que inegavelmente está no âmbito de sua incidência normativa?
As renúncias fiscais federais não cessam de ocorrer, sem nenhuma demonstração de impacto orçamentário, ou, quando muito, através da apresentação de malabarísticos cálculos circenses, com pouca precisão. Consta que já foram renunciados R$ 47 bilhões só neste primeiro semestre, e ainda estamos em março de 2022.
Está sendo comprometido o futuro do país, e o STF tem aplicado esta norma, de forma juridicamente contestável, apenas a estados com baixa expressão política, como Roraima (ADI 6.303 e 6.074) e Rondônia (ADI 5.816).
Será que não existe na pauta do STF nenhuma ação envolvendo a União acerca da aplicação do artigo 113, ADCT?
Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.
Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 29 de março de 2022.