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02/03/22

CONJUR: O preço dos combustíveis e os projetos para redução de tributos

Por Fernando Facury Scaff*

Um dos temas mais destacados atualmente no Congresso diz respeito à redução da tributação sobre o preço dos combustíveis. Existem três projetos em debate no Senado e a dúvida, que será respondida ao final deste texto, é: reduzir tributo necessariamente reduzirá o preço dos combustíveis?

O primeiro projeto é uma PEC, proposta pelo deputado Christino Áureo, que acresce um artigo ao ADCT, e determina que os entes federados poderão promover nos anos de 2022 e 2023 a redução total ou parcial de tributos de sua competência incidentes sobre combustíveis e gás. Estabelece que esta redução tributária não necessitará ser compensada, afastando esta exigência constitucional (art. 113, ADCT), o que implica em irresponsabilidade fiscal.

Este projeto ainda propõe uma norma extremamente curiosa, que prevê a possibilidade de serem “reduzidas as alíquotas de tributos de caráter extrafiscal, (…) ainda que não incidentes sobre os produtos mencionados”, o que é de uma abertura conceitual enorme, pois, o que exatamente significa “tributos de caráter extrafiscal”? Todos os tributos possuem “caráter extrafiscal”, sendo a distinção usualmente feita pelo advérbio “predominantemente”, que não consta da frase.

O Imposto de Renda é um tributo que possui caráter predominantemente fiscal (arrecadatório), mas também possui caráter extrafiscal (regulatório). O IOF é o oposto, tal como o IPI. Logo, sob este aspecto, a norma é imprecisa e traz a possibilidade de redução de qualquer tributo. Ademais, ainda menciona que tal redução pode ocorrer sobre tributos “ainda que não incidentes sobre os produtos mencionados” (combustíveis e gás), ou seja, a redução pode alcançar todo e qualquer produto.

Além disso, da forma redigida, cada estado poderá reduzir isoladamente o ICMS, na proporção que bem entender, sem a uniformidade que impõe as deliberações do Confaz. Já imaginaram a guerra fiscal que irá ocorrer? A insegurança jurídica vai grassar.

Este projeto, que já foi aprovado na Câmara e encontra-se em debate no Senado, é o da preferência do presidente Bolsonaro, informou o jornal Valor Econômico em 11/2/22.

O segundo projeto, que ficou conhecido como PEC kamikaze, foi proposto pelo senador Carlos Fávaro, e também permite aos entes federados reduzir os tributos de sua competência em 2022 e 2023, destacando-se que a energia elétrica entrou no rol de produtos que podem ser desonerados. Além da renúncia fiscal, esta PEC cria gastos públicos (subsídios) ao instituir “auxílio diesel” de R$ 1.200,00 por mês para cada caminhoneiro, cria o “vale gás”, e repassa dinheiro a estados e municípios para reduzir o preço do transporte público para idosos.

Os recursos para tais gastos correrão à custa do Fundo Social dos royalties do petróleo, criado no governo Lula e predominantemente destinado a gastos com saúde e educação. São previstas novas fontes de recursos para turbinar este Fundo, embora não tenha sido demonstrada sua sustentabilidade financeira e nem referido como se dará a disputa entre esses gastos com combustíveis e aqueles programados para saúde e educação.

Esta PEC afasta diversas medidas de responsabilidade fiscal, como (1) a compensação sobre a redução de tributos (art. 113, ADCT), (2) a apuração da meta de resultado primário, (3) o limite de despesas primárias, (4) o limite para operações de crédito, (5) permite que esta despesa seja realizada por meio de créditos extraordinários, (6) os quais podem ser realizados sem que ocorram despesas imprevisíveis e urgentes, (7) sendo que tais irresponsabilidades fiscais são permitidas apenas para a União. Não é à-toa que esta PEC ficou conhecida como kamikaze, isto é, suicida.

O terceiro é o Projeto de Lei Complementar 11/20, cujo substitutivo é do senador Jean Paul Prates. Atribui poderes ao Confaz para redução das alíquotas (ad valorem) e cria a possibilidade de cobrança por unidade de medida (ad rem) do ICMS sobre gasolina, etanol, diesel, biodiesel e GLP (consta que durante os debates o álcool foi retirado da lista), o que permite a adoção do ICMS monofásico.

As alíquotas terão que ser uniformes para todo o país, mas poderão ser diferenciadas por produto, sendo permitido ao Confaz arbitrar a base de cálculo, considerando “o preço que o produto ou seu similar alcançaria em uma venda em condições de livre concorrência”, bem como estabelecer “equiparações dos produtos mencionados” para fins de incidência do ICMS. É criada uma câmara de compensação entre os Estados, sem maiores detalhamentos. Parece nítido que o Confaz ganhará superpoderes caso essa norma seja aprovada.

Este PL 11/20 ainda determina que, quando ocorrer aumento do valor do ICMS, não será necessário obedecer a anterioridade plena (de um exercício para outro) sendo suficiente a noventena (intervalo de 90 dias), o que é claramente inconstitucional. O jornal Valor Econômico noticiou em 15/2/22 que durante os debates parlamentares foi acrescido neste projeto a possibilidade de ser criado um imposto sobre a exportação de petróleo, cuja arrecadação serviria para estabilizar os preços dos combustíveis no mercado interno, o que foi considerado estapafúrdio pela equipe econômica do próprio governo.

Não fosse suficiente todo esse debate legislativo, o Poder Executivo judicializou a matéria, tendo proposto em setembro de 2021 a ADO 68, na relatoria da ministra Rosa Weber, que não concedeu a liminar pretendida, e aguarda análise após concluída a fase do contraditório. Esta ação busca declarar a omissão do Congresso ao não criar a lei complementar necessária para o ICMS monofásico — lacuna que o PL 11/20 busca preencher.

O Poder Executivo ainda fez outro movimento pouco usual, pois consultou o TSE para saber se é legal reduzir o preço dos combustíveis no ano da eleição (Folha de S.Paulo, 15/2/22). Aguarda-se a resposta.

Ainda sobre o assunto, o Poder Executivo editou a Medida Provisória 1.100, em 14/02/22, promovendo ajustes no PIS e na Cofins na cadeia de produção do álcool hidratado combustível, cujos efeitos ainda pendem de maior análise.

Tendo chegado a este ponto da exposição e deixando de apreciar outros aspectos da matéria, que possui diversas inconstitucionalidades, retorna-se à questão inicial: Será que a redução dos tributos sobre a cadeia econômica dos combustíveis necessariamente fará cair o preço final na bomba? Resposta: sim, talvez e não (pode rir, caro leitor/leitora).

Sim, pois pode haver um impacto inicial em face da redução de custo na cadeia de produção.

Talvez, pois o que determina o preço é a concorrência, e não a redução da carga tributária. Logo, a redução é uma possibilidade, e jamais uma certeza. E o impacto será percentualmente baixo no preço final.

Não, pois tal medida não implicará em uma redução permanente do preço, em face do aumento da inflação, que no ano passado quase chegou a 11%. Assim, em pouco tempo, a eventual redução será engolida pelos posteriores aumentos de preço.

Dois aspectos finais para concluir.

Primeiro: toda essa movimentação indica que o presidente Bolsonaro busca responsabilizar alguém pelo aumento dos preços dos combustíveis. Alvos de sempre: o STF, caso não decida sobre a ADO 68; o TSE, caso responda que o Poder Executivo não pode reduzir tributos em ano eleitoral; o Congresso, que não regulamentou o ICMS monofásico; os governadores, caso não reduzam o ICMS e seu impacto não chegue na bomba de combustível, e por aí vai.

Segundo: o ponto central do problema não está sendo atacado, e encontra na fórmula de precificação da Petrobras, imediatamente vinculada à variação de preços internacionais, que seguem dois fatores altamente instáveis: o câmbio e as tensões políticas (para as internacionais, ver as disputas na Ucrânia e em Taiwan; para as nacionais…, basta ler as notícias do quotidiano). Quem ganha com isso? Os acionistas da Petrobrás (um punhado de gente). Quem perde com isso? A população brasileira (212 milhões de pessoas).

Você acredita que o presidente fará de imediato a coisa certa, que é criar uma espécie de câmara de compensação para amortecer a variação dos preços de combustíveis, sem mexer no dinheiro do Fundo Social, já destinado à nossa combalida educação e saúde públicas? Nada de tabelamento ou congelamento: amortecimento da variação de preços, a fim de que a instabilidade cambial e política seja reduzida e não repassada de imediato aos consumidores. Qual a chance de isso ocorrer?

Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.

Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em  21 de fevereiro de 2022.