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25/11/24

CONJUR: Os direitos fundamentais e as diversas anterioridades tributárias

Fernando Facury Scaff 

No atual texto da Constituição de 1988 existe o princípio da anterioridade, que foi paulatinamente sendo reconstruído, mas, como todo remendo feito por alterações normativas, deixou uma lacuna interpretativa, que exponho a vocês.

Desde a promulgação do texto original em 1988 a Constituição previa duas anterioridades: a geral e a das contribuições.

A anterioridade geral estava prevista no artigo 150, III, “b”, que previa ser vedado cobrar tributos no mesmo exercício financeiro em que houvesse sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, afastada para os tributos regulatórios (IPI, IOF etc.).

A anterioridade contributiva era de 90 dias, e se constituía em uma espécie de recorte, de exceção à anterioridade geral, mesmo sendo inegável que as contribuições são tributos. A norma consta do artigo 195 §6º, CF, e prevê sua exigência com um intervalo de tempo de 90 dias entre a edição da lei e o início de sua cobrança. Isso permitia que uma norma que criasse ou aumentasse o valor de uma contribuição fosse publicada em 1º de março e pudesse ser cobrado a partir de 1º de junho do mesmo ano, pois a exceção afastava expressamente a anterioridade geral.

Curiosamente, o que era uma garantia mais fraca (a contributiva) passou a ser mais forte, uma vez que para os tributos em geral (anterioridade geral) bastava publicar a lei no dia 31 de dezembro para que sua cobrança iniciasse no dia seguinte, 1º de janeiro, enquanto na anterioridade contributiva seriam necessários 90 dias de intervalo, embora no mesmo exercício financeiro.

Em 2003, através da EC 42, foi acrescida a alínea “c” ao artigo 150, III, estabelecendo um intervalo de 90 dias entre a publicação no diário oficial e a cobrança dos tributos, o que reforçou a anterioridade geral. Hoje, uma lei acrescendo ou criando tributos, para ser válida no ano posterior, deverá ser publicada até o dia 2 de outubro.

Aparentemente foram unificados os prazos das anterioridades, sendo a contributiva de 90 dias, e também de 90 dias esse reforço à anterioridade geral, acrescida pela inclusão da alínea “c” ao artigo 150, III, CF. Porém isso é apenas aparente, pois remanesce uma dúvida em razão do conflito de normas.

Problema
O problema que exponho está na redação do texto, pois a anterioridade contributiva prevê expressamente o afastamento da anterioridade geral (alínea “b”), mas não prevê o afastamento desse reforço (alínea “c”).

Observemos com lupa:

A anterioridade geral (alínea “b”) prevê ser vedado “cobrar tributos no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou”;
Esse reforço à anterioridade geral (alínea “c”) prevê ser vedado cobrar tributos “antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, observado o disposto na alínea b“;

Porém o texto da anterioridade contributiva, original de 1988, prevê que “as contribuições sociais de que trata este artigo só poderão ser exigidas após decorridos noventa dias da data da publicação da lei que as houver instituído ou modificado, não se lhes aplicando o disposto no art. 150, III, ‘b’.” (art. 195, §6º, CF)

Aqui está o problema: A literalidade do texto da anterioridade contributiva apenas afasta a anterioridade geral (alínea “b”), mas não afasta a anterioridade reforçada (alínea “c”).

Em concreto: ainda é possível que uma norma crie ou aumente o valor das contribuições seja publicada em 1º de março e sua cobrança se inicie a partir de 1º de junho do mesmo ano?

Se interpretarmos essas normas de modo meramente literal, a resposta será positiva, no sentido de ser possível que a cobrança de uma contribuição majorada ou instituída ocorra no mesmo ano, respeitado o intervalo de 90 dias, pois literalmente permanece apenas a exceção prevista da alínea “b”, que se refere apenas à anterioridade geral, não mencionando a reforçada (alínea “c”).

Porém, se considerarmos que a anterioridade se constitui em um direito fundamental dos contribuintes, a resposta será negativa, pois a garantia contra o Estado foi reforçada, e a majoração ou instituição de contribuições não pode se furtar a esse reforço de proteção. O recorte inicial, feito para as contribuições desde 1988, foi ultrapassado pelo reforço de proteção dos contribuintes ocorrido em 2003, pela EC 42.

Nessa segunda hipótese, de resposta negativa, não se há de falar em conflito de princípios, mas de regras, pois, usando a classificação de Alexy, os direitos fundamentais podem se constituir em regras, que são interpretadas por meio do “tudo ou nada”, na base do “valem ou não valem”. Todavia, além dos critérios de hierarquia, cronologia e especialidade previstos por Alexy para o conflito de regras, é necessário acrescer o critério de fundamentalidade, que ampara os direitos fundamentais.

Logo, a contrário senso da interpretação literal, que permitiria a cobrança das contribuições no mesmo ano da publicação da lei que as instituiu ou aumentou, entendo que, por se tratar de um direito fundamental, a ampliação da proteção dos contribuintes não permite essa exigência no mesmo exercício, pois às contribuições também se aplica o reforço da proteção estabelecido pela alínea “c”, embora não conste do texto literal da norma.

Mente quem disser que é fácil interpretar o direito.

Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.

Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 25 de novembro de 2024.