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18/04/22

CONJUR: Os princípios da anterioridade tributária, o Difal e os combustíveis

Por Fernando Facury Scaff*

O princípio da segurança jurídica é composto por várias normas, sendo uma das mais importantes a da anterioridade, que denomino de princípio por força do hábito.

Remotamente existia o princípio da anualidade, sobre o qual já escrevi nesta ConJur e que deveria voltar a compor nossa atual Carta.

Com a Constituição de 1988, foram editadas duas normas que veiculavam anterioridade: a plena, no artigo 150, III, “b”, e a contributiva, no artigo 195, §6º.

plena previa que a lei que criasse ou aumentasse tributos necessitava ser publicada no exercício anterior, prevendo algumas exceções.

contributiva se referia apenas às contribuições sociais, estabelecendo que só poderiam ser exigidas após 90 dias da publicação da lei que as houvesse instituído ou modificado, não se lhes aplicando a anterioridade plena. Como constituía um período menor que a plena, era também denominada de mitigada ou de nonagesimal, sendo que este último nome foi abandonado posteriormente, em face da modificação ocasionada pela EC 42/03, comentada adiante.

De forma paradoxal, a anterioridade contributiva ou mitigada, que exigia apenas 90 dias de antecedência (pois não necessitava obedecer a anterioridade de exercício, plena), acabou por se constituir em uma garantia mais segura aos contribuintes. Como o conceito de exercício, base para a aplicação da anterioridade plena, é apenas uma ficção jurídica que intermedia 31 de dezembro e 1º de janeiro de cada ano, muitas normas que instituíam ou aumentavam tributos (que não fossem contribuições sociais), tinham vigência plena do dia para a noite, o que era acatado pelo STF (nesse sentido o AgRg no AI 244.415, Moreira Alves e o RE 232.084, Ilmar Galvão). Logo, o que era mitigado (90 dias) havia se tornado mais seguro do que o pleno, caracterizando-se como uma contradição em termos.

Em 2003 a Emenda Constitucional 42 modificou o sistema das anterioridades, sob dois aspectos: 1) reforçando a anterioridade plena (artigo 150, III, “c”); e 2) aumentando o rol de suas exceções (artigo 150, §1º), o que não analisarei neste texto. Nada foi alterado acerca da anterioridade contributiva (artigo 195, §6º).

reforço à anterioridade plena, estabelecido pelo artigo 150, III, “c”, passou a ser conhecido por anterioridade nonagesimal (afastando essa denominação da anterioridade contributiva), e previa que seria vedada sua cobrança antes de decorridos 90 dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, inserindo ainda uma importante frase ao final: “Observado o disposto na alínea ‘b'”, o que, a reboque, obrigava a também respeitar a anterioridade plena.

Essa anterioridade nonagesimal, advinda da EC 42/03, reforçou a anterioridade plena, pois obrigava que, além de respeitar a virada do exercício, a lei que aumentasse ou instituísse tributos devesse ser publicada 90 dias antes de sua vigência, o que também obrigava os Fiscos a publicar a norma antes de outubro de cada ano, para que ela vigorasse a partir de 1º de janeiro do ano posterior. Com isso, a segurança jurídica se ampliava, e quase se assemelhava à anualidade acima referida, sendo que a diferença fica por conta da não exigência de inclusão dessa receita na previsão orçamentária.

Em face dessa alteração, é insuficiente respeitar os 90 dias para que a norma tributária que majorasse ou criasse os tributos sob sua égide fosse plenamente vigente, pois se trata de um reforço de segurança jurídica, expressamente consignada na frase final do artigo 150, III, “c”, que traz a reboque a necessária obediência à anterioridade plena. Logo, ou tal norma era publicada antes de outubro, ou só poderia vigorar no ano posterior ao seguinte, e não mediatamente no ano seguinte. Destacoa reboque do inciso III, letra “c” (anterioridade nonagesimal), está contida a letra “b” (anterioridade plena), o que demonstra o reforço de segurança jurídica aplicado ao sistema tributário. Logo, manter a letra “c” do inciso III, do artigo 150 implica em também manter a letra “b”, como um reforço.

Tal análise traz reflexos importantes para a interpretação de duas leis complementares recentes, que impactam fortemente o sistema tributário: a Lei Complementar 190/22, que trata do diferencial de alíquota do ICMS (Difal), e a Lei Complementar 192/22, sobre a tributação de combustíveis.

No caso da LC 190/22, sobre Difal, sua publicação ocorreu no mesmo ano em que os estados buscam cobrar o diferencial de alíquota de ICMS, e consigna em seu texto (artigo 3º) que deve ser respeitado o artigo 150, III, “c” da Constituição. Dessa forma, além de todos os argumentos já expostos em outro texto, constata-se que a própria LC 190/22 determina a obediência à anterioridade nonagesimal que contém a anterioridade plena a reboque, definitivamente inviabilizando a exigência dessa incidência no mesmo ano de publicação da LC 190/22.

No caso da LC 192/22, que trata da tributação de combustíveis, a situação é diferente, pois prevê (artigo 6º, §4º) que na definição das alíquotas de ICMS pelo Confaz deverá ser obedecido um intervalo mínimo de 12 meses entre a primeira fixação e o primeiro reajuste, e de 6 meses para os reajustes subsequentes, observado o disposto na letra “c”, III, artigo 150, CF (anterioridade nonagesimal, tendo a reboque, a anterioridade plena) — nesse sentido, seriam ambas anterioridades aplicáveis, a nonagesimal e também a plena? Não. A diferença fica por conta que a própria Constituição afasta a anterioridade plena prevista na letra “b”, III, artigo 150. A LC 192/22 trouxe um reforço de garantia ao contribuinte ao estabelecer a anterioridade nonagesimal (letra “c”), que, embora traga a reboque a anterioridade plena, esta foi expressamente afastada pela própria Constituição (ver artigo 155, §4º, IV, “c”). Nesse específico aspecto, a LC 192/22 trouxe mais garantias ao contribuinte do que previa a Constituição acerca da matéria. Logo, para que haja a majoração do ICMS dos combustíveis, na forma do artigo 6º, §4º, da LC 192/22, basta a anterioridade nonagesimal.

Tudo isso comprova a verdadeira colcha de retalhos que a Constituição de 1988 se transformou no âmbito financeiro e tributário, requerendo um enorme esforço interpretativo para compreensão do que nela está contido. Uma lástima.

Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.

Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em  4 de abril de 2022.