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24/10/23

CONJUR: Os sentidos de controle público e de controle social no Brasil

Por Fernando Facury Scaff e Celso Campilongo*

Controle é um instrumento tipicamente republicano. Quem assume incumbências públicas tem que prestar contas de seus atos ao povo, pois trabalha em função do povo. Para tanto, é necessário haver sistema de controle que verifique a adequação das condutas de conformidade com o prescrito pela Constituição e demais normas. E isso ocorre por meio do sistema de controle público e social estabelecido pela Constituição.

A ideia de controle está associada à de poder, que possui diversas dimensões, dentre elas a política, a econômica, a religiosa, a moral e a técnica, envolvendo não apenas dominação, mas também influência.

Controle é um termo amplo que abrange diversas funções, dentre outras, as atividades de auditoria, de fiscalização, de autorização, de sustação ou de impedimento à realização de atos que estejam sendo praticados. Cada um desses termos possui conotação própria.

Auditar possui um escopo mais amplo do que fiscalizar, pois implica a comparação de procedimentos e o diálogo para correção de rotas. Fiscalizar implica a identificação de irregularidades e punição dos atos realizados. Eventuais incorreções identificadas pelo sistema de auditoria podem gerar relatórios de inconformidade e recomendações para a correção dos procedimentos, mas sem punições; já o sistema de fiscalização, quando identifica uma inconformidade, aplica penalidades.

Outras funções inseridas na atividade de controle são as de autorização e as de sustação ou de impedimento da prática, ou para a prática de certos atos. Vê-se isso, por exemplo, nas atribuições do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), que é um órgão de controle econômico, pois não só fiscaliza como também autoriza determinados procedimentos empresariais, como fusões e aquisições, caso identificadas algumas hipóteses específicas tendentes à dominação de mercados.

A atividade de controle pressupõe publicidade e transparência, que são essenciais para a atividade governamental como um todo, o que permite afirmar sua essencialidade no âmbito de ações públicas que sejam efetivamente republicanas.

O vocábulo publicidade diz respeito ao que é público, que está em consonância com o que é “do povo”. Como o governo age em nome do povo, tudo que ele fizer deve ser tornado público, isto é, deve ter publicidade. Esse sentido do vocábulo publicidade tem correlação com a vulgarização de uma ideia ou informação, isto é, levá-la ao vulgo, torná-la vulgar.

Existem três vocábulos que muitas vezes são confundidos no estudo desse tema: publicidade, publicação e propaganda. Cada qual possui um sentido diferente.

Propaganda é a função de propagação de ideias visando ao convencimento das pessoas. Esta não se dirige apenas a divulgar, mas também a convencer e está mais voltada para o setor comercial, para as vendas, para colocar uma marca ou produto na preferência dos consumidores.

Publicidade está voltada à divulgação e difusão de fatos, ideias e eventos, sem o necessário objetivo de convencer (próprio da propaganda), mas de informar.

A linha de distinção é tênue, mas existe. O Reich alemão criou, em 1933, o “Ministério da Propaganda”, que foi determinante para a disseminação e o convencimento daquela população acerca da ideologia nazista.

Essa é a distinção que está na base da determinação constitucional de vedar o uso da publicidade para promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos (artifo 37, §1º), devendo ter caráter educativo, informativo ou de orientação social, de atos, programas, obras, serviços e campanhas realizadas pelo poder público. Não se pode usar do governo para propaganda pessoal ou mesmo do próprio governo, mas para publicidade das ações e campanhas necessárias para informação da sociedade. Estão permitidas, por exemplo, as campanhas publicitárias de vacinação periódica contra doenças, ou divulgação de informações sobre prazos para pedidos de bolsas de estudo ou exames gerais na rede de ensino, como o Enem. Deverão ser vedadas todas aquelas que não tenham caráter publicitário, mas propagandístico do governo.

Por outro lado, publicizar é mais amplo do que publicar. Publicar é apenas tornar público através de uma edição gráfica, ou virtual pela Internet, de um determinado ato de governo. Publicizar é difundir atos, fatos e ações de governo. É fornecer informação. Faz parte de uma iniciativa do agente público visando comunicar ao povo determinado ato ou procedimento. A publicidade é atinente a toda e qualquer ação pública. De que adiantaria a comunicação de uma campanha de vacinação apenas no diário oficial do Município? É necessário fazer com que a população a ser atingida por aquela determinada política pública efetivamente tome conhecimento das ações que estão sendo executadas pelo governo, em seu benefício.

É preciso distinguir ainda publicidade de transparência. A transparência obriga que todo e qualquer documento ou ato público esteja acessível e seja inteligível a quem nele tiver interesse. Publicidade equivale a um megafone, pelo qual se difunde uma informação; transparência equivale a vitrine de uma loja – não faz a disseminação da informação ao público, mas permite às pessoas verem a tudo dentro dela.

Enquanto a publicidade visa a difusão de informações, a transparência retira os véus que podem existir sobre a atividade pública. Existem atividades administrativas que não devem ser objeto de difusão de informações, no sentido do atingimento da população em geral, mas devem estar disponíveis a quem desejar obtê-las. A transparência é outro âmbito do princípio da publicidade.

O principal fundamento está no artigo 5º, XXXIII, que obriga o poder público a prestar informações, corolário do princípio da publicidade. Essa norma constitucional, que veicula um instrumento para o acesso ao direito fundamental de liberdade de informação, permite que qualquer pessoa tenha acesso aos documentos e informações que estão na posse do setor público.

Verifica-se que nem sempre o controle público é suficiente para controlar o próprio Estado. Em razão desses e de outros fatores, surge a necessidade do controle social, que, ao lado do controle público, visa subsidiá-lo e, muitas vezes, supri-lo, podendo mesmo funcionar contra ele.

Por controle social deve-se entender o controle exercido diretamente por toda a sociedade, e não por meio do Estado. Uma dessas fórmulas se dá pela inserção de pessoas representativas da sociedade nos órgãos decisórios para que o povo esteja inserido nessas deliberações e no controle dos atos do Estado.

Em diversos âmbitos foram determinados controles sociais pela Constituição, como pode ser visto: a) No artigo 204, II, quando possibilita a participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações referentes à seguridade social, em todos os níveis; b) No artigo 216-A, X, quando estabelece a democratização dos processos decisórios referentes às atividades culturais, com participação e controle social; c) No artigo 173, §1º, I, quando determina que a lei tratará do estatuto jurídico das empresas públicas e sociedades de economia mista e menciona que deverá ser abordada a forma de sua fiscalização pelo Estado e pela sociedade. Esses são alguns exemplos, que podem ser acrescidos de vários outros, espraiados pelo ordenamento jurídico.

Nem sempre a inclusão de membros da sociedade civil funciona no sistema de controle, pois a atomização dessa participação acaba por acarretar o enfraquecimento de sua atuação para as finalidades perseguidas. É usual que haja também a captura desses indivíduos pelo aparato estatal, o que a regulamentação deve dar conta de evitar.

O Decreto 8.243/2014 instituiu a Política Nacional de Participação Social (PNPS) e o Sistema Nacional de Participação Social (SNPS), visando regular a participação social em diversos Conselhos, tendo gerado uma reação política inaudita no Brasil, havendo mesmo quem temesse pela sovietização do Brasil caso ele fosse implementado. Foi por tal motivo que, em 2019, esse Decreto foi revogado pelo Decreto 9.759, de 11/04/19, sem que nenhuma política de controle social tenha sido implementada em substituição.

É chegada a hora de reavivar o controle social da atividade estatal em nossa república, a fim de que cumpra seu papel ao lado, e muitas vezes contra o controle público.

Esse trabalho foi apresentado na 9ª edição do Encontro do Consórcio de Integração Sul e Sudeste (Cosud), realizado na Universidade de São Paulo, na cidade de São Paulo, nos dias 19 e 21 de outubro de 2023, referente ao Grupo de Trabalho sobre Transparência, Controladoria e Ouvidoria, sendo que parte dele compõe o livro Orçamento Republicano e Liberdade Igual — Ensaio sobre Direito Financeiro, República e Direitos Fundamentais no Brasil (Belo Horizonte: Editora Fórum, 2018), da lavra do primeiro autor deste texto.

Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.

Celso Campilongo é professor titular da Universidade de São Paulo e atualmente exerce o cargo de diretor da Faculdade de Direito da USP. Advogado.

Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 24 de outubro de 2023.