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18/04/22
Por Fernando Facury Scaff*
Nesta coluna que escrevo quinzenalmente sobre direito tributário, e que tenho a alegria de dividir com Raul Haidar, inicio perguntando: as repetições de indébito tributário se caracterizam como despesas públicas?
Resposta: sim e não.
Sim, porque se trata de uma saída de recursos do Tesouro; logo, a repetição de indébito é uma espécie de despesa pública.
Não, porque essa despesa decorre de uma entrada indevida no Tesouro, decorrente do pagamento de tributos em montante superior ao devido, seja por erro do declarante ou por ser inconstitucional aquela tributação.
A resposta “sim” demonstra uma análise estática do fenômeno financeiro, vinculada à tributação: é uma despesa, pois sairá dinheiro do caixa.
A resposta “não” revela uma visão dinâmica do processo financeiro, pois sairá o montante correspondente ao que indevidamente entrou no caixa, logo, houve uma origem relacionada àquela saída. Não se trata de uma despesa qualquer, mas, destaco, uma despesa decorrente daquela indevida cobrança, além dos limites constitucionais estabelecidos.
Qual a importância prática dessa distinção? Ou se trata apenas de uma das incontáveis classificações acadêmicas sem nenhum impacto na realidade?
Entendo que tal distinção tem relevantíssima importância prática.
Uma coisa é a devolução de tributos federais, via compensação, repetição, ressarcimento ou reembolso, operacionalizada pelo sistema PERDCOMP, regulamentada pela Instrução Normativa RFB 2.055/21, que cria uma espécie de conta corrente entre o Fisco federal e o contribuinte.
Outra coisa é uma despesa pura e simples, tal como o pagamento dos salários do funcionalismo, que é custeado pelo conjunto da arrecadação, tributária e não tributária. Aqui não existe uma direta correlação entre o que pagam os contribuintes e a despesa realizada. As subvenções encontram-se neste âmbito, na forma do art. 12 da Lei 4.320/64 — são despesas pura e simples.
Entendida a diferença acima indicada, deve-se introduzir uma terceira situação, que não é idêntica, mas é correlata, que são as renúncias fiscais, que podem ser operacionalizadas através de isenções, imunidades etc., através das quais o dinheiro sequer ingressa no Tesouro Público. Logo, a rigor, não há uma despesa pública direta, mas aquilo que os economistas denominam de gasto tributário, aportuguesando o conceito norte-americano de “tax expenditure”. Trata-se de uma ficção jurídica que considera existir uma espécie de despesa pública, pois a receita que deveria ter ingressado nos cofres públicos foi legalmente dispensada.
O tratamento tributário das subvenções recebidas pelas empresas privadas é disciplinada pelo Regulamento do Imposto de Renda (RIR) nos arts. 441 e 523, dentre outros. Aqui, para efeito do Imposto de Renda das empresas, considera-se tanto o que foi por elas recebido (subvenção, como despesa pura e simples), como as renúncias fiscais concedidas (isenções, imunidades etc).
Logo, é preciso distinguir que esses valores, efetivamente pagos ou renunciados, correspondem (a) a uma despesa real ou fictícia para o Tesouro, e (b) a uma receita para as empresas que as recebem, que pode ou não ser tributada (vide, por exemplo, as determinações do art. 10 da Lei Complementar 160/17, acerca do tratamento tributário federal referente aos incentivos fiscais estaduais).
Com isso pode-se afirmar que: (1) uma coisa são as renúncias fiscais, comumente designadas como benefícios ou incentivos fiscais, que correspondem a um tipo específico de despesa, pois não ingressam no Tesouro e por ficção jurídica são denominadas de gasto tributário, (2) outra coisa são as subvenções, que correspondem a despesas que efetivamente saem dos cofres públicos, e (3) uma terceira coisa são as repetições e compensações tributárias, que são despesas, mas correlacionadas a receitas indevidamente recebidas.
E o Reintegra?
Conforme já expus nesta ConJur, o Reintegra é o direito das empresas exportadoras à recuperação dos resíduos de crédito tributário na cadeia produtiva, decorrente da imunidade das exportações. Trata-se de uma espécie de repetição de indébito, pois é uma despesa decorrente de tributos indevidamente arrecadados.
Sendo assim, o Reintegra (1) não é renúncia fiscal, embora dela seja decorrente, pois é fruto da imunidade das exportações; (2) não é uma subvenção, pois estas são despesas pura e simples do Tesouro, sem correlação com alguma receita específica. Considerando a dinâmica financeira, o Reintegra é uma repetição de indébito, a ser devolvido mediante compensação tributária, via PERDCOMP, pois tem origem em uma cobrança indevida de tributos na exportação.
Seria possível perguntar: trata-se da devolução de qual específico tributo, uma vez que a exportação é imune? Eis o ponto: é a devolução de resíduos tributários remanescentes da cadeia de produção. Não há um específico tributo a ser ressarcido, mas resíduos tributários decorrentes da cadeia exportadora.
Pode-se afirmar, portanto, que o Reintegra não é uma subvenção, nem uma renúncia fiscal, mas uma repetição de indébito de difusos resíduos tributários remanescentes na cadeia produtiva. Inegavelmente ocorreu o pagamento dos tributos, e o Reintegra determina sua devolução, motivo pelo qual se assemelha a uma repetição de indébito/compensação tributária.
A ausência dessa necessária análise dinâmica do fenômeno financeiro é que vem gerando algumas dificuldades interpretativas.
Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.
Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 18 de abril de 2022.