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18/10/21
Por Fernando Facury Scaff*
Existem diversos projetos para mudança na tributação da renda e do consumo, inclusive com alteração por emenda constitucional. Já os critiquei, sugerindo seu arquivamento e a criação imediata de uma comissão para preparação de uma reforma financeira federativa, a ser votada pelos novos deputados e senadores que tomarão posse em 2023 (ver aqui e aqui).
Todavia, visando auxiliar os debates, encaminho desde logo uma sugestão para ser analisada, seja no âmbito dos atuais projetos, seja no futuro. Trata-se do retorno ao princípio da anualidade tributária.
Segue breve exposição para quem não tem a memória do assunto.
O princípio da anualidade tributária vigorou no Brasil amparado pela Constituição de 1946 (art. 141, §34) e pela Constituição de 1967 (art. 150, §29) e prescrevia que nenhum tributo seria cobrado em cada exercício sem prévia autorização orçamentária, com ressalvas para os tributos com finalidade regulatória. André Mendes Moreira faz uma excelente análise do tema.
O intuito claro era que, se não houvesse previsão daquela receita no orçamento, ela não poderia ser cobrada. Como o projeto de lei orçamentária anual (PLOA) deveria ser apresentado ao Congresso cerca de seis meses antes do final do ano (na Constituição de 1988 o prazo é 31 de agosto), se o Poder Executivo desejasse criar ou aumentar algum tributo, deveria encaminhá-lo junto com o projeto de lei orçamentária anual. Isso dava maior previsibilidade e transparência na gestão orçamentária e tributária, ampliando a segurança jurídica. Outra possibilidade seria criar ou majorar os tributos no âmbito do Congresso durante a votação do projeto.
Pressionado pelos diferentes níveis federativos do Poder Executivo, o STF não agiu bem ao aprovar a Súmula 66, em 1963, relativizando essa segurança jurídica: “É legítima a cobrança do tributo que houver sido aumentado após o orçamento, mas antes do início do respectivo exercício financeiro”. Vê-se desta redação que ficou consagrada a anterioridade tributária, em completo desrespeito à anualidade tributária, o que acabou jogando por terra essa garantia dos contribuintes.
Na prática, a anterioridade tributária entende ser suficiente que a lei que crie ou majore tributos seja publicada no exercício financeiro anterior à sua vigência, sem a necessidade, constante da anualidade tributária, que exigia prévia inclusão no orçamento. Não precisa dizer que isso quebrou a unidade financeira do país, pois muitas receitas foram aumentadas sem a correspondente previsão para as despesas, aumentando a discricionariedade administrativa no país.
A Constituição de 1988, em sua redação original, não consagrou a anualidade tributária, apenas a anterioridade tributária, no art. 150, III, “b”, afastada para os tributos regulatórios, e ainda com a peculiar exceção, exclusiva para as contribuições sociais, inicialmente denominada de anterioridade mitigada, prevista no art. 195, §6º, que previa sua exigência com um intervalo de tempo de 90 dias entre a edição da lei e o início de sua cobrança. Curiosamente o que era uma garantia mais fraca (por isso mitigada) passou a ser mais forte, uma vez que para os tributos em geral bastava publicar a lei no dia 31 de dezembro para que sua cobrança iniciasse no dia seguinte, 1º de janeiro, enquanto na mitigada seriam necessários 90 dias de intervalo. Em face dessa constatação, passou a ser denominada de nonagesimal ou contributiva, deixando o nome de mitigada apenas para registro histórico.
Na prática, os mais antigos hão de lembrar, caçava-se o diário oficial do último dia do ano para identificar o “pacote” que aumentaria a carga tributária no dia seguinte. Houve até mesmo casos em que a circulação do diário oficial foi retardada, com a edição de 31 de dezembro saindo nos primeiros dias de janeiro, a fim de cumprir formalmente a exigência constitucional. A majoração de tributos era tão certa quanto o peru de Natal ou o show do Roberto Carlos na Globo.
Em 2003, através da EC 42, foi acrescida a alínea “c” ao art. 150, III, estabelecendo um intervalo de 90 dias entre a publicação no diário oficial e a cobrança dos tributos, sem alterar a anterioridade das contribuições, que permanece igual. Logo, hoje, se uma lei acrescendo ou criando tributos for publicada em 31 de dezembro, sua exigibilidade só ocorrerá 90 dias após, respeitadas as exceções mencionadas na norma.
Ocorre que 90 dias é pouco tempo para dar aos contribuintes a devida previsibilidade e a segurança jurídica adequada para a condução de seus negócios. Foi o arremedo possível, ao longo do tempo, para corrigir uma falha de origem, causada pela leitura torta do STF ao aprovar a Súmula 66.
Já que o governo federal está com uma febre reformatória no âmbito tributário, sugiro que seja cogitado o retorno da anualidade tributária, conforme existia na Constituição de 1946 e na Constituição de 1967, determinando que nenhum tributo seja cobrado em cada exercício sem prévia autorização orçamentária, com as devidas ressalvas para aqueles que tiverem finalidade regulatória, como os usuais IOF, Imposto de Importação e de Exportação, e o IPI. Mantidas as garantias atuais da noventena tributária geral.
Isso trará maior segurança jurídica a todos contribuintes e reforçará a integridade financeira, pois não haverá receita livre de compromissos com o gasto público.
Fica a sugestão.
Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff Advogados.
Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 18 de outubro de 2021.