Usamos cookies para melhorar a funcionalidade do nosso site, ao continuar em nossa página você está concordando em recebê-los.
Para obter mais informações, visite nossa Política de Privacidade.
10/06/24
Fernando Facury Scaff
Semana passada foi realizada uma audiência pública na Câmara dos Deputados sobre o PLP 68, que é o Projeto de Lei Complementar enviado pelo Poder Executivo para deliberação do Congresso. Fui convidado para expor algumas ideias sobre o projeto para a comissão de relatores, composta, dentre outros, pelo deputado federal Joaquim Passarinho. Este texto sumariza a exposição que fiz no tempo disponibilizado, de 10 minutos.
Iniciei mencionando o que não trataria, isto é, dos problemas decorrentes da opção legislativa adotada pelo Poder Executivo de encaminhar uma Emenda Constitucional para tratar desse assunto. Uma vez que a EC 132 foi aprovada em dezembro de 2023, as críticas se configuram em página virada, que servirão apenas para fins doutrinários, e que estão sumarizadas em textos publicados nesta ConJur sob o título de Um salto no escuro, com torcida a favor.
Expus também que não trataria de aspectos essencialmente jurídicos do PLP 68, pois a matéria seria mais adequada para ser debatida perante o Poder Judiciário, e não na Câmara dos Deputados. Logo, minha exposição se voltava muito mais à política legislativa, a fim de alertar os deputados-relatores do PLP 68 de aspectos que me parecem politicamente inadequados, o que não invalida posterior debate judicial, caso venham a ser aprovados tal como propostos.
Como o tempo era breve, destaquei os seguintes aspectos
Sobre a não-cumulatividade, isto é, as situações em que não é previsto direito ao crédito, mencionei problemas no art. 38 (dentre outros), que determina a incidência do IBS e da CBS (adiante denominados de Cibs) sobre o fornecimento não oneroso ou a valor inferior ao de mercado de bens e serviços para uso e consumo pessoal de pessoas físicas. O texto do §1º usa uma expressão inadequadíssima, que é “a título exemplificativo”, o que amplia o poder de tributar ao permitir que o Fisco venha a reduzir os créditos desse tributo.
Dentre os itens consta “a disponibilização de bem imóvel para habitação, bem como despesas relativas à sua manutenção”, “a disponibilização de veículo, bem como despesas relativas à sua manutenção, seguro e abastecimento”; o celular, “plano de assistência à saúde” e “educação”, embora conste no §2º que não serão considerados bens e serviços de uso e consumo pessoal “aqueles utilizados exclusivamente na atividade econômica do contribuinte.”
Isso trará diversos tipos de problemas: (1) será necessário investigar se o bem foi utilizado na atividade-fim da empresa ou no interesse pessoal da pessoa física, o que traz à memória a enorme e nefasta litigância existente no século passado quanto ao DDL (Distribuição Disfarçada de Lucros), no âmbito do imposto sobre a renda, para identificar o que seria ou não utilizado nas finalidades empresariais, ou algum desvio de finalidade; (2) Será necessário também investigar se o valor cobrado dos empregados está ou não de conformidade com o valor de mercado, exigência constante do caput do artigo 38; (3) Isso acarretará o aumento indireto de custos para as empresas e os empregados, pois será necessário aumentar o valor do que é cobrado dos empregados para fins de garantir o valor do crédito de Cibs; e, por fim (4) requererá um batalhão de fiscais nas empresas visando identificar na contabilidade se houve ou não o atendimento à finalidade pretendida. Em síntese: trata-se de um ponto que merece reflexão, pois gerará diversos contenciosos pulverizados, a serem debatidos caso a caso no Judiciário.
Split payment
Outro aspecto é o split payment, que, tal como descrito no item 82 da Exposição de Motivos do PLP 68, estabelece que “Os prestadores de serviços de pagamento deverão, então, segregar e recolher aos cofres públicos, no momento da liquidação financeira, os valores do IBS e da CBS.”
Esse mecanismo fará com que parte do Cibs seja pago de imediato, por ocasião da liquidação financeira da operação mercantil. Ou seja, liquidada a fatura pelo sistema bancário, o Fisco, de imediato, abocanhará uma parte do imposto devido, sem que se tenha noção se, ao final do período, haverá ou não imposto a pagar.
Um exemplo esclarece: hoje, todas as operações são consolidadas ao final do mês, e, havendo imposto a pagar, ele é pago; por outro lado, se não houver, nada será despendido. Isso é comum nos períodos de formação de estoques, como nas vésperas de Natal ou do Dia das Mães. Com o split payment o Fisco já ficará imediatamente com uma parte do imposto, por ocasião da liquidação bancária da fatura, antes mesmo de se saber se haverá ou não imposto a pagar ao final do período.
Um terceiro aspecto que expus diz respeito à superposição de incidências entre a Cibs e o ITBI, o ITCMD e o IOF. Novamente foi utilizada uma expressão para denotar “de forma exemplificativa” — o que é inadequado, pois aumenta a possibilidade de arbítrio fiscal — o artigo 4º estabelece que o Cibs pode decorrer de qualquer ato ou negócio jurídico, como “dação em pagamento”, “locação”, “empréstimo”, “doação onerosa”, “instituição onerosa de direitos reais” e “arrendamento, inclusive mercantil”. Observa-se que muitas destas incidências estão superpostas, conforme expus em outro texto com relação ao Cibs e o ITBI, acerca da venda de imóveis (clique aqui).
O quarto aspecto abordado diz respeito a um tópico importantíssimo mencionado em outra ocasião pelo coletivo Mulheres no Tributário, relativo à multiplicidade de fiscalizações, pois, sendo o tributo devido no destino, estará a empresa sujeita à fiscalização do município de origem e de destino? Ao Estado de origem e de destino? A competência fiscalizatória será múltipla?
Nem é necessário usar muitas palavras para descrever o caos que isso acarretará. Uma ideia para debate é utilizar a regra: “quem primeiro iniciar a fiscalização, afasta a competência dos demais”. Deve-se conferir se esta é a melhor alternativa. Este ponto necessita ser regulado, e se constitui em um ponto cego no PLP 68.
O último ponto que mencionei diz respeito ao Reequilíbrio dos contratos de longo prazo. O §1º do artigo 365 menciona que o pedido a ser formulado “deverá ser decidido de forma definitiva no prazo de 120 (cento e vinte) dias contados do protocolo, prorrogável uma única vez por igual período caso seja necessária instrução probatória suplementar”, o que parece adequado. Porém a parte final estabelece: “ficando o referido prazo suspenso enquanto não restar atendida a requisição pela contratada.”
Isso pode levar as empresas a enfrentarem sérios problemas de caixa, pois não há previsão de encerramento desta fase. A sugestão é que o reajuste seja validado enquanto a Administração Pública não analisar a questão em definitivo, claro que limitado ao montante do impacto tributário estimado para aquele setor, e não de forma indiscriminada.
Poderia ter falado sobre a Cesta Básica Nacional, que não contém nem uma única espécie de proteína animal, mas não deu tempo.
Também por falta de tempo deixei de mencionar aspectos importantes do Imposto Seletivo, que ora apenas elenco, sem descer a minúcias: (1) o que é poluente é o tipo de combustível, e não os veículos, ao invés do que prevê o projeto. Tal como escrito, a produção de barcos, navios e automóveis será fortemente impactada; (2) a identificação do que são bebidas açucaradas está inadequada, devendo ser revisada; (3) a questão da incidência na exportação de minérios e de petróleo deve ser revisada, pois desconectada do comando constitucional e da realidade nacional.
Enfim, foi o que consegui expor nos breves minutos que me disponibilizaram na audiência pública realizada, com feras do Direito Tributário compartilhando as diversas mesas. Espero que estas observações venham a ser úteis na análise do PLP 68 pelos deputados federais, em especial os que compõem a comissão de análise do projeto.
Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.
Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 10 de junho de 2024.