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29/11/21

CONJUR: Sobre precatórios, direito adquirido e tatuagens: faz escuro, mas eu canto

Por Fernando Facury Scaff*

Tente explicar a um investidor estrangeiro o que é um precatório. Aposto que será uma tarefa árdua. Explicar para brasileiros já é dificílimo. A melhor forma de o fazer para um gringo será dizer que se trata de um título judicial emitido pelo Poder Judiciário. A rigor, é isso mesmo, com certidão em cartório e assinada embaixo. Não se trata de um dos inúmeros títulos emitidos pelo Poder Executivo, que podem ser acessados pelo site do Tesouro Direto, que sequer são emitidos em papel, existindo apenas em meio virtual, contabilizados em registros eletrônicos.

Agora pense em explicar ao investidor estrangeiro que o governo brasileiro não pretende pagar esses precatórios porque eles não cabem no teto de gastos (EC 95). Como explicar o que é teto de gastos para um gringo? Usar a expressão expenses roof seria adequado? Ou ficaria melhor expense ceiling? Incompreensível.

Agora tente explicar a esse investidor estrangeiro que o calote não decorre de falta de dinheiro, pois há dinheiro — o Tesouro Nacional está com as burras cheias. Será uma tarefa inglória, pois jamais haverá quem compreenda.

Essa é a situação do Brasil em face do problema dos precatórios. O investidor brasileiro poderá até compreender o que está acontecendo, mas o estrangeiro jamais entenderá, nem mesmo com o melhor tradutor da realidade econômica brasileira. Isso demonstra o problema que está sendo gestado no âmbito do Congresso, com a PEC dos Precatórios, que atingirá profundamente a credibilidade do Brasil nos mercados internacionais.

Pode-se alegar que existem riscos em qualquer investimento, mas, vamos convir, deveria ser baixíssimo o grau de risco de um título garantido pelo Poder Judiciário brasileiro. Esse aspecto só potencializa o tamanho do problema colocado diante do Congresso.

Por outro lado, é possível indagar as razões da existência desse mercado de precatórios.

Pelo lado da compra, por qual motivo existem investidores, nacionais ou estrangeiros, dispostos a comprar tais títulos? A resposta é simples: compram-se esses títulos porque são garantidos pelo governo, que se comprometeu a pagar na forma constitucionalmente estabelecida.

E por que há quem os queira vender? Porque os titulares desses precatórios, pessoas físicas ou jurídicas, que litigaram na Justiça por décadas em busca do reconhecimento de seus direitos, não quiseram ou não puderam esperar mais tempo pelas diversas protelações efetuadas pelo governo para pagar suas dívidas. Queriam dinheiro já, cansados de tanto esperar.

Havendo quem queira vender e quem queira comprar, qual o valor do precatório nesse mercado? Depende de diversos fatores, pois a Constituição concede preferência de recebimento a diferentes credores, o que diferencia o preço. São preferenciais os créditos alimentícios decorrentes de salários, vencimentos, proventos, pensões, benefícios previdenciários e indenizações por morte ou por invalidez (artigo 100, §1º). São também preferenciais os credores idosos (artigo 100, §2º) e os créditos de menor valor (artigo 100, §3º). O preço se altera também em razão do devedor ser a União, os Estados, os municípios ou suas autarquias. Logo, o mercado regula quanto será pago por esses títulos. Normalmente, por serem títulos garantidos pelo poder público, quem compra tem dinheiro para esperar o recebimento, e quem vende tem pressa em receber o dinheiro, concedendo um desconto sobre o montante que teria a receber, a depender dessas variáveis, entre outras.

Aqui se chega a um impasse, pois, se o governo institui este calote previsto na PEC, o valor dos títulos cairá, e quem está vendendo receberá menos, pois seu precatório estará desvalorizado. Logo, à primeira vista, este calote ajudará quem quer comprar (quem tem dinheiro, bala na agulha) e prejudicará quem quer vender. Sendo assim, do que estariam se queixando os investidores? Resposta: caindo ainda mais a credibilidade no sistema, todos perdem. Não se há de esquecer que credibilidade é o fator não escrito que mantém em pé todo e qualquer mercado.

Descrito o sistema e o problema, qual peculiaridade jurídica que não está sendo levada em consideração nessa votação, que pretende afastar os precatórios da prioridade no teto de gastos, privilegiando os gastos eleitorais, já que o valor do temporário Auxílio Brasil, de R$ 400, pode caber no teto?

É que, em concreto, o valor de R$ 89 bilhões em precatórios para ser pago em 2022, é amparado por três garantias constitucionais: a coisa julgada, o ato jurídico perfeito e o direito adquirido, todas previstas no artigo 5º, XXXVI. Explicar isso é simples, até mesmo para o hipotético investidor estrangeiro.

Coisa julgada é a decisão judicial transitada em julgado, isto é, acerca da qual não cabe mais nenhum recurso. Logo, esses precatórios contém uma ordem judicial de pagamento. Não se trata de um pedido, mas de uma ordem judicial para pagar o valor calculado.

Já o ato jurídico perfeito decorre de sua inclusão no sistema de pagamentos judiciais. Em sentido técnico: o precatório requisitório já foi regularmente expedido, aguardando apenas seu pagamento; sendo assim, as normas que regem a matéria são aquelas vigentes quando de sua expedição, isto é, no momento em que o ato foi aperfeiçoado.

A conjugação dessas duas garantias desemboca na terceira, que é o direito adquirido que os donos desses precatórios possuem em os receber no tempo e modo pelos quais foram expedidos, sejam os credores originais ou quem os adquiriu.

Assim, será inconstitucional a pedalada que se pretende aplicar aos precatórios já expedidos em 2021, no montante de R$ 89 bilhões, cujo pagamento não está sendo priorizado sob o teto de gastos. Para que não haja sombra de dúvidas: os credores desse montante de R$ 89 bilhões em precatórios já expedidos em 2021 devem ter seus créditos pagos de acordo com as normas jurídicas vigentes quando foram expedidos, e qualquer postergação desse pagamento violará seu direito adquirido. Logo, a tentativa de pedalar o pagamento integral desse valor é inconstitucional, violando cláusula pétrea (artigo 60, §4º, IV).

O ministro Carlos Ayres Britto usou uma frase ímpar para descrever todo esse processo: “Estão tentando comer pela beirada cláusula pétrea a golpes de emenda constitucional”. Esse tema foi discutido na 54ª Mesa de Debates do IBDF Instituto Brasileiro de Direito Financeiro (ver aqui, em especial nos minutos finais). Vale conferir.

Essas garantias estão tatuadas no corpo da Constituição e da sociedade, como na música de Chico Buarque: “Quero ficar no teu corpo feito tatuagem/ Que é pra te dar coragem/ Pra seguir viagem/ Quando a noite vem”.

E a noite está vindo, como se vê.

Devemos seguir bradando “faz escuro mas eu canto/ porque a manhã vai chegar”, como na poesia de Thiago de Mello, tema da 34ª Bienal de São Paulo.

É preciso resistir à operação desmonte que está em curso.

Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff Advogados.

Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em  23 de novembro de 2021.