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02/10/23
Na última segunda-feira (25/9), a Advocacia-Geral da União enviou manifestação ao Supremo Tribunal Federal para defender a inconstitucionalidade do teto de pagamento de precatórios. O órgão argumenta que o regime atual recria a moratória na quitação de débitos judiciais, já invalidada pela corte. E, segundo especialistas no assunto consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico, a comparação é válida.
As Emendas Constitucionais (ECs) 113/2021 e 114/2021 alteraram as regras dos precatórios federais. Até 2026, só poderá ser pago no ano corrente o que tiver sido pago no ano anterior, acrescido da inflação. Ou seja, os valores que ultrapassarem o limite de pagamento anual serão transferidos para o ano seguinte.
Na última década, o STF declarou a inconstitucionalidade de outras ECs semelhantes, que estabeleciam o pagamento parcelado de precatórios ou prorrogavam o prazo para quitação.
Segundo Luciana de Campos Maciel da Cunha, sócia conselheira do escritório Bichara Advogados, o Supremo já invalidou o “elastecimento temporal da dívida estatal, em razão da violação às cláusulas constitucionais da separação dos poderes, da isonomia, do acesso à Justiça, da efetividade da tutela jurisdicional, do direito adquirido e da coisa julgada”.
Para ela, o objetivo final do regime atual “é bastante semelhante — para não dizer idêntico — ao que já foi avaliado anteriormente pelo STF”. Assim, “em observância à uniformidade das decisões”, a corte “deveria manter a coerência de entendimento”.
O tributarista Hugo de Brito Machado Segundo também entende que “os motivos invocados para declarar inconstitucionais as ECs anteriores se aplicam por igual agora”.
Conforme foi estabelecido pelo STF, não se pode limitar ou dificultar o pagamento de precatórios — pois, quando fez isso, o poder público violou o direito adquirido do beneficiário e a independência do Judiciário. “A situação, agora, é rigorosamente a mesma”, afirmou Machado Segundo.
Marcio Brotto de Barros, presidente da Comissão Especial de Precatórios do Conselho Federal da OAB, vai além e afirma que as ECs 113 e 114/2021 “trouxeram consequências muito mais nefastas ao sistema jurídico do que emendas constitucionais anteriores” relativas ao pagamento de precatórios.
No regime da EC 30/2000, por exemplo, “os jurisdicionados pelo menos tinham uma certa previsibilidade de pagamento do seu crédito”, ainda que fosse em dez parcelas anuais. Pelas regras atuais, segundo o advogado, “essa previsibilidade sequer existe” e o pagamento é adiado para um futuro distante.
A emenda de 2000 foi declarada inconstitucional em 2010. Para Barros, se o Supremo tomou tal decisão mesmo com a previsibilidade mencionada, hoje tem “muito mais razão” para invalidar as ECs de 2021.
A constitucionalista Vera Chemim, mestre em Direito Público Administrativo, também vê similaridades entre as atuais regras e as ECs declaradas inconstitucionais pelo STF anteriormente. Em ambos os casos houve parcelamento dos valores dos precatórios para estados e municípios.
Assim como a EC 62/2009 (invalidada em 2013), o regime atual também dá ao credor a opção de entregar os créditos em precatórios para compra de imóveis públicos. No entanto, em 2021, as alternativas foram ampliadas — permitiu-se, entre outras coisas, o uso desses valores para a quitação de débitos inscritos em dívida ativa.
Calote
Machado Segundo lembra que o poder público não pode “definir se, como, quando e em que termos cumprirá uma decisão judicial”, pois deve se submeter a elas.
“Em um Estado de Direito, que preza pela separação de poderes e pela reserva de jurisdição, pagamentos de condenações judiciais não podem ser vistos como despesas discricionárias, que o governante escolhe pagar ou não, a depender de suas conveniências e das necessidades de se realizarem outros gastos.”
De acordo com o tributarista, a dívida represada dos precatórios pode se tornar incontrolável. “A cada ano de aplicação do regime, além dos precatórios que normalmente seriam pagos naquele exercício, herdam-se os que não foram pagos nos anos anteriores por força do teto. E assim sucessivamente”, explica. “A sistemática funciona como uma bomba-relógio”.
O advogado, que também é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFCE), é contrário à modulação de uma futura decisão do STF. “Um dos pressupostos para que se possam limitar temporalmente os efeitos de uma declaração de inconstitucionalidade é a boa-fé do órgão emissor do ato inconstitucional, que não tinha, à época da edição do ato, como saber que ele seria declarado inválido”, explicou ele. No caso em debate, as propostas no Congresso já eram apelidadas de “PECs do Calote”.
Luciana Cunha também considera que o adiamento do pagamento dos precatórios e a flexibilização da ordem de quitação prejudicam os credores. Segundo ela, as ECs de 2021 “caracterizam-se como um verdadeiro calote das obrigações da União” e geram “enorme desconfiança da capacidade da União em honrar suas obrigações”.
Já Vera Chemim parte do pressuposto de que o represamento imposto pelas novas regras causará um aumento significativo das despesas primárias e financeiras. “É forçoso admitir que a União corre o risco de chegar a uma situação de insolvência e da consequente incapacidade de arcar com o pagamento de precatórios existentes e os que ainda estão por vir.”
Em sua coluna na ConJur, o advogado Fernando Facury Scaff, professor de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), já ressaltou o “efeito bola de neve” do regime atual, que não respeita as ordens judiciais, nem a responsabilidade fiscal. “O montante que ultrapassar o subteto vai se acumulando até estourar no último ano do atual governo.”
A solução proposta por Scaff é alterar a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) para que todos os precatórios — e não só os inadimplidos — sejam expressamente considerados como dívidas. Segundo ele, qualquer pagamento de precatórios deveria ser contabilizado inteiramente na dívida pública.
“Essa proposta atende à responsabilidade fiscal, mas só atenderá aos credores se, ao mesmo tempo, passarem a ser pagos todos os precatórios, não apenas os do subteto.”
Já Élida Graziane Pinto, professora de Finanças Públicas da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, alinha-se à posição do economista José Roberto Afonso, um dos responsáveis pela redação da LRF. Para eles, precatórios devem ser contabilizados como dívidas, e não despesas. Por isso, não faz sentido mantê-los dentro de uma regra fiscal.
Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 29 de setembro de 2023.