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02/12/21

FOLHA DE SÃO PAULO: Não dá para pedalar precatório de 2022 e Congresso tenta empurrar a bola para STF

Fernando Facury Scaff
Professor titular de direito financeiro da USP e advogado

Está em discussão no Congresso a PEC 23, que adia o pagamento dos precatórios e altera substancialmente as normas financeiras na Constituição.

No caso, o problema central não é falta de dinheiro, mas fazer com que o valor dos precatórios previstos para pagamento em 2022 fique dentro do teto de gastos criado pela Emenda Constitucional 95/16, durante o governo Temer, para vigorar durante 20 anos.

O Congresso não está conseguindo fazer a coisa certa. Todas as propostas consideradas como válidas nos debates passam por dar calote na dívida pública, representada pelos precatórios –tanto no texto aprovado pela Câmara dos Deputados, como o que se discute no Senado. Essa é a condução errada do assunto.

Para bem entender o problema, deve-se afastar toda a fumaça que encobre a visão.

Existem três questões financeiras entrelaçadas, em disputa para estar sob o mesmo teto. Uma é manter as emendas de relator, que sustentam a relação do Poder Executivo com o Legislativo. Outra é criar fonte de recursos para pagar o Auxílio Brasil de R$ 400 mensais. E a terceira são os precatórios já expedidos para pagamento em 2022, no valor de R$ 89 bilhões.

Manter as emendas de relator é a verdadeira prioridade, pois sustentam a relação de “toma lá dá cá” entre o Congresso e o Executivo, através do manejo não isonômico dos recursos públicos. Este é o foco do debate. É para incluir o maior volume possível de recursos para estas emendas que toda essa confusão financeira está sendo feita.

A fonte de recursos para pagar o Auxílio Brasil é o argumento retórico, pois dinheiro existe e o gasto é justo. O problema é que, para estar sob o teto de gastos, outra despesa terá que sair –e, obviamente, não podem ser as emendas de relator, que se constituem na principal prioridade política, que se busca ocultar.

Ocorre que, constitucionalmente, não há como pedalar os R$ 89 bilhões de precatórios que já foram expedidos para serem pagos em 2022. Os credores têm direito adquirido a os receber na forma e nos prazos determinados no momento de sua expedição. Logo, todo esse esforço para dar uma bicicleta nos precatórios de 2022 cairá por terra no STF, que possui pacífica jurisprudência nesse sentido. Tudo indica que o Congresso quer passar o problema para o STF decidir, o que, igualmente, não é correto e gerará ruídos políticos e econômicos.

Afastada a cortina de fumaça que encobre o problema, o que é fazer a coisa certa? Reconhecer que os precatórios são dívida pública, constituída através de títulos (ordens de pagamento) emitidos pelo Poder Judiciário, igual aos milhares emitidos cotidianamente pelo Executivo. Com isso, eles saem do teto de gastos, tal como toda a dívida pública, que não está sob ele. Trilhar esse caminho permitirá que não se quebre a credibilidade no sistema de pagamentos da dívida pública brasileira.

Se os gastos reeleitorais serão ou não mantidos sob o teto é outro problema, que não possui direta correlação com a solução acima apontada.

Seguir o caminho que está sendo trilhado pelo Congresso gerará a seguinte dúvida no mercado: já que o governo está pedalando os precatórios, que são dívidas judiciais, por que não pedalaria as demais dívidas, representadas por títulos públicos como LTNs (Letras do Tesouro Nacional) e assemelhados? Credibilidade não se compra, se conquista.

Texto originalmente publicado no site da Folha de São Paulo em 01 de dezembro de 2021.