Publicações

Compartilhar

16/03/21

Governar é eleger prioridades, e quando tudo é, nada é

Por Fernando Facury Scaff*

 

De paternidade incerta, a frase “governar é eleger prioridades”, ora é atribuída a John Kennedy, ora a Juscelino Kubitschek, é um bom indicador de governabilidade, pois demonstra à sociedade quais serão as principais preocupações daquele período de governo. De certo modo, isso acabou por se traduzir em um mote de propaganda governamental, como um símbolo das prioridades a serem objeto das preocupações daquele período.

 

Há cerca de um século o presidente Washington Luís adotou o lema governar é abrir estradas. Mais recentemente, no governo Sarney, o lema era tudo pelo social. No primeiro período do governo Lula, o slogan governamental foi Brasil, um país de todos. Dilma usou dois slogans, país rico é país sem pobreza, e, Brasil, pátria educadora, um para cada período de governo. Bolsonaro adotou o Pátria Amada, Brasil.

 

Tudo isso tem a ver com propaganda governamental, coisa diferente de publicidade. Propaganda tem a função de propagação de ideias visando ao convencimento das pessoas, não servindo apenas para divulgar, mas também para convencer. A propaganda está mais voltada para o setor comercial, para as vendas, para colocar uma marca ou produto na preferência dos consumidores; a publicidade está voltada à divulgação e difusão de fatos, ideias e eventos, sem o necessário objetivo de convencer (próprio da propaganda), mas de informar. A linha é tênue, mas existe.

 

O Reich alemão criou, em 1933, o Ministério da Propaganda, que foi determinante para a disseminação e o convencimento da população alemã acerca da ideologia nazista. Essa é a distinção que está na base da determinação constitucional de vedar o uso da publicidade para promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos (artigo 37, §1º), devendo ter caráter educativo, informativo ou de orientação social.

 

A lógica é que não se pode usar do governo para propaganda pessoal ou mesmo do próprio governo, mas para publicidade das ações e campanhas necessárias para informação pública – do povo. Estão permitidas, por exemplo, as campanhas publicitárias de vacinação periódica contra doenças, ou divulgação de informações sobre prazos para pedidos de bolsas de estudo ou exames gerais na rede de ensino.

 

Todos os slogans acima citados, portanto, têm a função de propagandear um objetivo de governo, porém, serão úteis para se identificar as verdadeiras prioridades do período, ou apenas uma vaga e difusa tentativa de convencer a população acerca das intenções governamentais? Eis o ponto sob análise.

 

Penso que as prioridades de um governo — qualquer governo, em qualquer nível federativo — devem ser identificados por suas ações, e não apenas por sua propaganda. E isso pode ser identificado de várias formas, uma delas, bastante simbólica, se verifica na eleição de prioridades entre Executivo e Legislativo. Observemos um caso concreto.

 

O atual presidente da República encaminhou ao Congresso — que esteve presente na sessão de abertura do ano legislativo em 3 de fevereiro — tendo entregue em mãos aos presidentes da Câmara e do Senado a mensagem presidencial para 2021 na qual foram listadas 35 prioridades para o corrente ano.

 

Reportagem do jornal Valor Econômico elaborada por Raphael Di Cunto, Matheus Schuch e Renan Truffi, relaciona quais são essas 35 prioridades, identificando 26 projetos econômicos e 09 de “costumes”:

 

 

Pauta econômica

 

 

Número

 

Ementa

 

Onde está

 

PL 4476/2020

 

Lei do Gás

 

Câmara

 

PL 3877/2020

 

Depósitos Voluntários

 

Câmara

 

PL 6726/2016

 

Teto Remuneratório

 

Câmara

 

PL 3515/2015

 

Superendividamento

 

Câmara

 

PLP 19/2019

 

Autonomia do Banco Central

 

Câmara

 

PEC 45/110

 

Reforma tributária

 

Câmara/Senado

 

PL 2646/2020

 

Debêntures de infraestrutura

 

Câmara

 

PL 5877/2019

 

Privatização da Eletrobras

 

Câmara

 

PL 5387/2019

 

Marco Legal do Mercado de Câmbio

 

Senado

 

PLP 191/2020

 

Mineração em terras indígenas

 

Câmara

 

PEC 32/2020

 

Reforma administrativa

 

Câmara

 

PL 3729/2004

 

Licenciamento ambiental

 

Câmara

 

PL 5518/2020

 

Concessões Florestais

 

Câmara

 

PL 2633/2020

 

Regularização fundiária

 

Câmara

 

PL 4199/2020

 

BR do Mar (cabotagem)

 

Senado

 

PLP 146/2019

 

Marco legal das startups

 

Senado

 

PL 7843/2017

 

Eficiência Administrativa (Govtec)

 

Senado

 

PL 5191/2020

 

Fundo de Investimento Agrícola (Fiagro)

 

Senado

 

PL 3178/2019

 

Muda regime de partilha do petróleo

 

Senado

 

PLS 232/2016

 

Modernização do setor elétrico

 

Senado

 

PLS 261/2018

 

Transporte ferroviário em infraestruturas privadas

 

Senado

 

PEC 186/2019

 

PEC Emergencial

 

Senado

 

PEC 187/2019

 

PEC dos Fundos

 

Senado

 

PEC 188/2019

 

PEC do Pacto Federativo

 

Senado

 

PLP 137/2019

 

Uso dos fundos públicos para a pandemia

 

Senado

 

PLC 8/2013

 

Cobrança de pedágio por trecho (free flow)

 

Senado

 

 

Pauta de costumes

 

 

 

Número

 

Ementa

 

Onde está

 

PL 6438/2019

 

Registro, posse e comercialização de armas de fogo

 

Câmara

 

PL 6125/2019

 

Normas aplicáveis a militares em GLO

 

Câmara

 

PL 3780/2020

 

Aumento de pena para abuso sexual em menores

 

Câmara

 

PL 6093/2019

 

Documento único de transporte

 

Câmara

 

PL 1776/2015

 

Inclui pedofilia como crime hediondo

 

Câmara

 

PL 2401/2019

 

Ensino doméstico (homeschooling)

 

Câmara

 

PL 3723/2019

 

Porte de armas para categorias

 

Senado

 

PLS 216/2017

 

Revisão da Lei de Drogas (Corrupção de menores)

 

Senado

 

PLC 119/2015

 

Altera Estatuto do Índio contra infanticídio

 

Senado

 

Olhando essa relação, onde constam temas de grande relevância e de real importância, me vem à lembrança uma frase muito utilizada em filosofia, na qual se tudo é, nada é. Ou seja, se existem 35 prioridades governamentais para um ano, nenhuma delas é realmente prioritária, e o governo apenas apresentou um rol de intenções, e não de prioridades. Na pandemia sanitária em que nos encontramos, onde está esta prioridade?

 

Neste sentido, alinho-me muito mais com o ministro Guedes, quando afirma que, sem saúde, não há economia, apontando para o que deveria ser a verdadeira prioridade do governo, qual seja, preservar a saúde e salvar vidas da população brasileira, e, com isso, reanimar a economia. Afinal, atingimos a nada louvável média de 2 mil mortos a cada dia, e a vacinação, que não foi prioridade do governo em 2020, não consta da lista em 2021, exceto, de forma difusa, quando menciona o PLP 137/2019, que diz respeito ao uso dos fundos públicos para a pandemia.

 

Meu alinhamento ao ministro Guedes é meramente circunstancial e pontual, pois, a despeito de sua afirmativa, continua a alimentar a reforma tributária, que não é assunto prioritário em nenhum país do mundo nesse período pandêmico, como tive a oportunidade de escrever na coletânea publicada pela Conjur acerca das reformas tributárias e financeiras por ele propostas.

 

Nesse panorama, constata-se o completo descolamento das prioridades do governo federal da realidade que nos cerca e do vírus que nos ameaça. Só resta desejar a todos muita saúde, pois o comando constitucional do artigo 196 permanece descumprido: A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Nunca essa norma foi tão importante e tão negligenciada, o que é lastimável — no rol de ações governamentais prioritárias onde está previsto o dever do Estado na redução do risco de doença?

 

Enfim, é o que temos para hoje, com muita tristeza pela anomia e pelo desgoverno reinante. Estamos chegando perto do salve-se quem puder, e, embora se veja alguma luz no fim do túnel, é apenas um vagalume isolado; é necessário que surja uma nuvem de vagalumes, representados pelas vacinas, que chegam em conta-gotas. Espero que você, caro leitor, consiga sobreviver, e com saúde.

 

*Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP). advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff Advogados.

 

Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 16 de março de 2021