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18/11/20
Fernando Facury Scaff*
Uma das formas através das quais se garante aos cidadãos alguma segurança jurídica contra os arbítrios no exercício do poder é através de um sistema pelo qual o poder controla o próprio poder, denominado separação de poderes.
O princípio da legalidade geral está previsto na Constituição Federal em seu artigo 5°, II, ao prever que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer senão em virtude de lei”.
Ocorre que esse sistema não foi suficiente para regular as liberdades no mundo contemporâneo, pois a singela legalidade não dava conta das especificidades técnicas havidas na sociedade. Um sem número de questões que envolvem o quotidiano dos cidadãos não podem ser resolvidas na base naquilo que se convencionou chamar nos dias que correm de legalidade geral ou ampla.
Por outras palavras, o princípio da legalidade, em seu sentido geral, admite delegação de competência normativa — ou seja, admite que outra norma de âmbito infralegal, usualmente administrativa, complemente o conceito amplo estabelecido, e implemente a diretriz pretendida.
Nesse passo é que surge uma diferença no ordenamento jurídico, que é o estabelecimento do princípio da “reserva legal”, através da qual só através de lei — reservado à lei — é que se pode adotar determinada conduta.
No Direito Penal é conhecido o adágio: “sem prévia lei, é nulo o crime e nula a pena” (CF, artigo5º, XXXIX.). Essa norma, que vai reger diretamente a liberdade da pessoa, não admite delegação de competência normativa — só a lei, entendida como ato do Poder Legislativo, é que poderá estabelecer o que seja um crime. Portanto, todos os detalhes descrevendo a conduta considerada criminosa devem estar contidos na lei, sem os quais não haverá a possibilidade de incriminação penal.
O mesmo ocorre no direito tributário, no qual algumas condutas só são permitidas ao Estado através de lei em sentido restrito, tal como a de criar e a de aumentar tributos. Só através de atos do Poder Legislativo descrevendo integralmente a conduta estabelecida como geratriz do pagamento, ou do aumento de tributos, é que estes poderão como tal serem considerados e cobrados. Sem lei em sentido estrito, não poderá haver tributação. O princípio da reserva legal tributária está previsto no artigo 150, I, CF.
O cerne da norma é claro: apenas a lei pode criar tributo, exercendo a competência tributária. Mas não é só. Apenas a lei pode estabelecer as características da exação tributária, fixando integralmente a hipótese de incidência em todos os seus aspectos.
Observe-se ainda que o princípio da reserva legal não se circunscreve à Constituição, podendo ser exigido por outras normas, como ocorre com o CTN no artigo 97, que cria um rol de condutas que só podem ser veiculadas através
de lei em sentido formal, ou seja, aquelas que obedecem ao princípio da reserva legal tributária.
Assim, a diferença entre ambas as situações é flagrante. No princípio amplo da legalidade admite-se a delegação de competência normativa para outros órgãos diversos ao Poder Legislativo. Na reserva legal, ou princípio restrito da legalidade — princípio da reserva legal tributária —, essa delegação de competência normativa é vedada, devendo constar na própria lei (ato do Poder Legislativo) todos os requisitos para que tenha eficácia jurídica a conduta regrada.
Um exemplo pode muito bem demonstrar a diferença entre o que estabelece nossa Constituição, no princípio da legalidade (artigo 5º, II) em contraposição com o que determina o princípio da reserva legal tributária (artigo 150, I).
Não existe uma lei que determine os locais em que os automóveis sejam proibidos de estacionar. Isso é estabelecido usualmente através de placas de trânsito, disponibilizadas pelos departamentos de trânsito de cada município, consoante delegação de competência normativa constante do Código Nacional de Trânsito (Lei 9.503/97). Aqui se está defronte ao princípio (amplo) da legalidade (artigo 150, II, CF), que admite delegação de competência normativa ao Poder Executivo para regrar aquela conduta através de normas infralegais — ou até mesmo por sinais de trânsito.
A situação é completamente distinta da instituição ou majoração de tributos, cuja imposição deve ser veiculada na própria lei, isto é, no próprio ato do Poder Legislativo, sendo absolutamente inconstitucional haver delegação de competência normativa, a teor do princípio da reserva legal tributária (artigo 150, I, CF). Assim, todos os elementos que impliquem em criação ou aumento de tributos devem ser veiculados na própria lei — ato do Poder Legislativo.
A jurisprudência do STF é pacífica e uníssona nesse sentido, ao reafirmar a reserva legal tributária, como se vê, entre muitas: ministro Celso de Mello (ADI 1296), ministro Marco Aurélio (RE 632.265) e ministro Roberto Barroso (RE 628848 ED).
Alguns tributos possuem um diferente perfil dentro dessa reserva legal, pois suas alíquotas são móveis, no limite de uma faixa criada por lei, que se constitui em um teto de tributação dentro do qual as alíquotas podem variar através de atos infralegais. São eles, de acordo com o artigo 153, §1º, CF: Importação (inciso I), Exportação (inciso II), IPI (inciso III) e IOF (inciso IV) — todos de competência privativa da União.
Ocorre que a Lei paulista 17.293/20, no artigo 22, §1º, sem amparo na Constituição Federal, e muito menos na Constituição Estadual, criou uma espécie de alíquota-teto para o ICMS em 18%, travestindo-o em um imposto tal qual IPI, IOF, IImp e IExp. Veja-se o texto:
“Artigo 22 — Fica o Poder Executivo autorizado a:
II – Reduzir os benefícios fiscais e financeiros-fiscais relacionados ao Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação –
ICMS, na forma do Convênio nº 42, de 3 de maio de 2016, do Conselho Nacional de Política Fazendária – CONFAZ, e alterações posteriores.
§1º. Para efeito desta lei, equipara-se a benefício fiscal a alíquota fixada em patamar inferior a 18% (dezoito por cento)”.
O Estado de São Paulo, através do artigo 22 da Lei nº 17.293/20, completamente à margem das normas constitucionais, criou para o ICMS uma metodologia própria de cálculo, que só existe para a União, e especificamente para alguns tributos, que é o da alíquota-teto, que pode variar para cima e para baixo dentro do percentual de 18% estabelecido. Ou seja, em razão dessa norma, o governador passou a ter tinta na caneta para aumentar e reduzir as alíquotas do ICMS até o teto de 18%, sem necessidade de ato específico do Poder Legislativo para aumentá-lo.
Pode? Não, não pode. Esta norma infringe o princípio da reserva legal tributária ao criar essa alíquota-teto, espécie de escala móvel tributária para o ICMS paulista, ao arrepio de qualquer norma constitucional.
É tão disparatado o procedimento em face do ordenamento jurídico que lembra o conhecido confisco da poupança realizado pelo governo Collor, em março de 1990, quando todos os valores depositados em bancos acima de cinquenta mil cruzados novos (cerca de R$ 8 mil em valores atuais) foram congelados para devolução de forma parcelada, iniciando-se 18 meses após. Existe uma decisão do TRF-3, na Arguição de Inconstitucionalidade na Apelação em Mandado de Segurança nº 36325, cujo impetrante foi Fábio Konder Comparato, na qual o relator, desembargador federal Américo Masset Lacombe, discorreu sobre as várias figuras jurídicas para configuração daquele bloqueio, tais como requisição, confisco, confisco temporário, servidão de uso ou empréstimo compulsório, chegando à conclusão de que nenhum desses institutos estava adequado ao figurino constitucional. É significativo o voto-desabafo do desembargador Márcio Moraes naquele caso:
“Convenci-me, Sr. Juiz Presidente, de que o bloqueio não é nada!
E não é nada porque não pertence ao mundo do Direito.
É um ato de força, tout court, que costumeiramente – e a história do Brasil que o diga – é veiculada pela espada.
Este veio, mais sofisticadamente, montado numa norma jurídica.
Daí porque não pode ter qualquer natureza jurídica, não se coaduna com quaisquer dos institutos do Direito.
Pertence a outro mundo, antinômico ao Direito, que é o mundo da força.
É uma violência, simplesmente”.
Este voto-desabafo é exemplar porque bem define o artigo 22 da Lei estadual paulista nº 17.293, de 15 de outubro de 2020, considerando-o como um ato de força, montado em uma norma jurídica, que não se coaduna com quaisquer dos institutos do Direito. É uma violência, simplesmente.
*Fernando Facury Scaff é Professor Titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) e sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados.
Texto originalmente publicado no Consultor Jurídico em 16/11/2020.