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09/08/21
Por Editorial
Não tem o menor cabimento a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que pretende criar folga de caixa para o governo no Orçamento de 2022 adiando o pagamento de dívidas judiciais já decididas em última instância. Há motivos jurídicos e econômicos para impedir que esse absurdo prospere.
A Constituição determina expressamente que o governo inclua o valor dessas dívidas no Orçamento e garanta o pagamento no ano seguinte, por meio do mecanismo conhecido como “precatório”. O parcelamento é, portanto, inconstitucional. Foi o que decidiu o Supremo Tribunal Federal (STF) quando se debruçou sobre o tema em 2013.
Para atender à demanda de estados e municípios em situação fiscal crítica, porém, o Supremo decidiu em 2015 manter até 2021 o regime de parcelamento antes em vigor. Em 2017, o Congresso aprovou uma emenda constitucional aumentando esse prazo para 2024. Neste ano, uma nova emenda permitiu o parcelamento até 2029 para os entes federativos que estivessem com pagamentos em dia em 2015. No final de 2020, os precatórios devidos por estados e municípios brasileiros somavam R$ 151,5 bilhões, dinheiro suficiente para quase cinco anos de Bolsa Família.
Sem ter de onde tirar dinheiro para Bolsonaro criar seu programa social eleitoreiro, o ministro Paulo Guedes quer agora uma emenda que permita também à União parcelar o pagamento dos precatórios. Os detalhes ainda não estão claros — fala-se em parcelar em até nove anos precatórios acima de 60 mil salários mínimos (R$ 66 milhões) —, mas juristas já dão como certo que, caso aprovada, a nova emenda acabará no Supremo.
O regime especial de pagamento de precatórios para os entes da Federação foi, segundo a tributarista Tathiane Piscitelli, da Fundação Getulio Vargas (FGV) de São Paulo, uma necessidade para que pudessem pôr as contas em dia. O caso da União é distinto. Não há estoque de precatórios em aberto, e a Constituição já tem uma regra flexível para valores elevados: se houver precatório superior a 15% da soma total, o valor que ultrapassar esse patamar pode ser parcelado nos anos subsequentes. Além disso, a União dispõe, ao contrário de estados e municípios, de capacidade sólida para emitir sua própria dívida.
É justamente esse o motivo econômico para derrubar a proposta. Por permitir maquiar o endividamento, ela se torna, nas palavras do jurista Fernando Facury Scaff, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), “uma quebra de contrato baseada numa contabilidade criativa”. Se for adiante, causará ainda mais insegurança jurídica àqueles que entraram na Justiça para receber valores devidos pela União, ganharam em todas as instâncias — algo que pode levar décadas — e correm o risco de morrer antes de ver a dívida quitada.
O exemplo de estados e municípios com suas indústrias de precatórios deveria servir de alerta. O discurso do “devo, não nego, pago quando puder”, proclamado por Guedes, não pode ser política de Estado. A União deve fugir da pecha de caloteira. Se o governo não recuar, será responsabilidade do Congresso Nacional barrar mais esse absurdo.
Texto originalmente publicado no jornal O Globo em 07 de agosto de 2021.