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16/03/21

O real na travessia da pandemia, o STF e a federação

Por Fernando Facury Scaff*

 

“O real não está no início nem no fim,

ele se mostra pra gente é no meio da travessia”.

Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas

 

Para os gregos antigos a palavra endemos significava aquelas pessoas que habitavam as cidades, e a palavra epidemos designava os habitantes do campo, que apenas circunstancialmente nelas transitavam. Isso levou Hipócrates, considerado o pai da Medicina, a denominar como epidemias as doenças súbitas que atingiam grande escala populacional, pois elas não eram da região, chegavam e depois iam embora[1].

 

A história da humanidade é plena de relatos de grandes epidemias, sejam as míticas (as bíblicas pragas do Egito), sejam as documentadas, como a que atingiu o exército persa na Batalha das Termópilas, em 480 a.C., e que ficou conhecida como a peste de Xerxes, dando vitória aos espartanos[2], que também venceram os atenienses com a ajuda de uma epidemia, que ficou conhecida como a peste do Egito, na Guerra do Peloponeso, tendo inclusive matado Péricles, o grande estadista e general ateniense, em 430 a.C.[3]

 

Os exemplos poderiam se multiplicar, considerando a Peste Negra, na Idade Média europeia, a gripe e sífilis na conquista da América, até a Gripe Espanhola, em 1918.

 

O ano de 2020 entrará para a história da humanidade como o de uma grande pandemia, isto é, uma epidemia que se alastrou por vários continentes, conhecida como a Grande Pandemia da Covid-19, que inaugurou o século XXI sob uma perspectiva sanitária.

 

Em todas essas situações ao longo da história, a humanidade congregou esforços para combater o mal epidêmico, tendo obtido grande êxito até aqui, com maior ou menor perdas humanas e de recursos naturais e econômicos.

 

É interessante observar os desdobramentos das ações governamentais com esta pandemia através do impasses gerados no ordenamento jurídico brasileiro.

 

O marco legal inicial, temporalmente considerado, é a Lei 13.979, que dispôs sobre “as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019”. Tal norma foi proposta, discutida no Congresso e sancionada em 6 de fevereiro, antes mesmo das festas carnavalescas, que foram amplamente festejadas até a terça-feira gorda, em 25 de fevereiro.

 

A partir daí, como em um espiral de non sense que lembra O Processo de Franz Kafka e o universo labiríntico de Jorge Luiz Borges, o Brasil se transformou na imaginária Macondo de Gabriel Garcia Marques, na qual as guerras políticas e ideológicas desviaram as autoridades governamentais, em especial do governo federal, do principal problema, que é a manutenção da saúde, da vida e dos empregos. O impasse federativo, que já era latente, aflorou com grande intensidade.

 

O Congresso Nacional agiu com rapidez, como se vê pelo Decreto Legislativo 6/2020 (que declarou o estado de calamidade), pela Emenda Constitucional 106/20 (que criou o Orçamento de Guerra) e pela Lei Complementar 173/20 (que estabeleceu o rateio federativo dos recursos financeiros para enfrentamento da pandemia).

 

A reação negacionista do Poder Executivo federal pode ser dimensionada a partir de uma coleção de frases do Presidente da República; dentre as quais uma se destaca por dizer respeito à atuação federativa no combate à Covid, proferida em 08/06/20:

 

”Lembro à Nação que, por decisão do STF, as ações de combate à pandemia (fechamento do comércio e quarentena, p.ex.) ficaram sob total responsabilidade dos Governadores e dos Prefeitos”.

 

Ocorre que a decisão do STF não foi exarada neste sentido, como se pode conferir na ADPF 672, relatada pelo Ministro Alexandre de Moraes, desde a decisão liminar concedida, cujo destaque é do texto original: “sem prejuízo da COMPETÊNCIA GERAL DA UNIÃO para estabelecer medidas restritivas em todo o território nacional, caso entenda necessário.”

 

Tudo indica que o governo federal não entendeu necessário adotar as necessárias e imprescindíveis ações de coordenação federativa a que estava obrigado pela Constituição, optando pelo discurso negacionista da epidemia, se furtando a agir contra ela.

 

Cá entre nós: será que os governos — federais e estaduais — pensavam que as vacinas seriam orais, como a Sabin, contra a poliomielite? Ninguém lembrou que seriam necessárias seringas para sua aplicação? É demais, não?

 

Mais do que nunca foi central no Brasil o debate federativo, como se verifica nas ADI 6.341 (Relator Ministro Edson Fachin), 6.357 (Relator Ministro Alexandre de Moraes), além da ADPF 672 (Relator Ministro Alexandre de Moraes), já mencionada.

 

Esta correlação entre o negacionismo do governo federal e o protagonismo dos governos estaduais e municipais atingiu níveis inauditos em nossa história.

 

O temor de que a Anvisa, agência reguladora federal que deve aprovar o uso e a aplicação das vacinas no Brasil, esteja sendo utilizada de modo político, inibindo as iniciativas dos governos estaduais que já vinham desenvolvendo parcerias com laboratórios internacionais para aplicação em seu território, como no Estado de São Paulo, gerou nova onda de litígios federativos no STF.

 

Dois se destacam: a ACO 3.451, proposta pelo governador do Estado do Maranhão, de relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski, pela qual requer que seja declarada a possibilidade de seu Estado “deflagrar a elaboração e execução de plano de imunização no âmbito do seu território, inclusive buscando a celebração de acordos para aquisição direta de vacinas”, e a ADPF 770, proposta pela OAB, com o mesmo intuito, independente de registro formal na Anvisa. A liminar foi concedida em ambos os casos pelo Relator, Ministro Lewandowski, e podem ser lidas na reportagem de Fernanda Valente, nesta ConJur.

 

De certa forma, o pleito da ACO 3.451 e ADPF 770 se correlacionam com a ADPF 754 e a ADI 6.625, que visam obter do governo federal o alegado e desconhecido “Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19”, o qual foi apresentado ao Relator, Ministro Ricardo Lewandowski, sem que contivesse a data para o início das suas atividades, e com vários dos cientistas nele mencionados declarando à imprensa não terem dado o aval para o documento.

 

Para concluir este breve panorama, existem as ADIs 6.586 e 6.587 e o ARE 1.267.879, que reconheceram a compulsoriedade na aplicação da vacina, que, a meu ver, se assemelha ao voto obrigatório, que prevê sanções a quem não votar – multa e alguns embaraços administrativos. Por favor, não confundir compulsoriedade com vacinação à força.

 

Neste final de 2020 espero que a vacina chegue logo, a despeito da incompetência dos governos que sequer encomendaram as seringas para sua aplicação. É certo, contudo, que os efeitos jurídicos da pandemia não obedecerão ao calendário gregoriano, gerando consequências por muito tempo.

 

O real, conforme Guimarães Rosa, citado na epígrafe, se identifica no meio da travessia – estamos nessa fase, que aponta para uma avaliação muito negativa de todos os governos brasileiros.

 

[1] UJVARI, Stefan Cunha. A história e suas epidemias – A convivência do homem com os microrganismos. Rio de Janeiro: Senac Rio, 2003, pág. 24.

 

[2] Heródoto. História. Ed. eBooksBrasil – Agosto 2006. Livro VIII, item CXV. Disponível em https://docero.com.br/doc/xnxs8.

 

[3] TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1987. O relato da peste perpassa todo o Livro Segundo, com destaque para os capítulos 47 a 57 e 87.

 

*Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e atualmente no exercício da presidência da Comissão de pós-graduação da faculdade.

 

Artigo originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 22 de dezembro de 2020