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10/08/21

SBT News: O que são precatórios e como interferem na expansão do Bolsa Família

Em meio às movimentações do Governo Federal, nesta semana, visando à expansão do valor e número de beneficiários do Bolsa Família, um termo ganhou destaque: precatórios. Segundo o Executivo, uma alteração na forma de pagamento destes é imprescindível para mudar o programa de transferência de renda, cujos montantes, diz o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), podem chegar próximo de R$ 400,00. Mas, afinal, o que são precatórios?

Segundo o professor titular de direito financeiro Fernando Scaff, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP), eles consistem em dívidas “que decorrem de decisões judiciais movidas contra o poder público, que transitaram em julgado”. Para exemplificar, em entrevista ao SBT News, Scaff citou uma situação hipotética na qual um caminhão de lixo, de responsabilidade da prefeitura, bate no carro de um munícipe que estava estacionado, causando um prejuízo de R$ 10 mil.

“Isto a prefeitura não paga na boca do caixa, ela entra em precatório: decisão judicial transitada em julgado contra o poder público”, acrescentou. Para todas as esferas — municipal, estadual e federal — funciona da mesma forma, sendo que o trânsito em julgado ocorre quando não é possível recorrer da sentença promulgada por um juiz. E para pagar os valores determinados pela Justiça, diz o professor, “a lógica é que isto funcione da maneira orçamentária, quer dizer, todas as decisões que transitarem em julgado elas têm que ser enviadas pelo Poder Judiciário ao Poder Executivo até o dia 1º de julho de cada ano”.

“O Poder Executivo tem que introduzir esses valores como ordens a pagar, ordens do Judiciário, no projeto de Lei Orçamentária. E esse montante precisa ser aprovado pelo Legislativo para a Lei Orçamentária do ano seguinte e tem que ser pago até o final do ano”, completou. Para 2022, o Governo Federal, prevê uma despesa superior a R$ 90 bilhões com precatórios, quase o dobro do gasto em 2021.

Os valores vêm subindo a cada ano, e o motivo, explica o professor da USP, é que “o poder público, aqui no caso a União, tem cometido mais irregularidades”. “Não é o governo atual, aqui tem que dizer isto. Por exemplo, quase R$ 17 bilhões desses R$ 90 bilhões que estão aí decorrem de falhas, de erros, cometidos na época do governo Fernando Henrique Cardoso. Ou seja, tem quase 20 anos ou próximo disso atrás. As ações começaram lá atrás”, pondera.

Para acabar com os precatórios, então, reforça Scaff, o governo precisa se atentar em sempre cumprir a lei, ou seja, não praticar irregularidades. O longo período de tempo entre a ocorrência destas e o pagamento da dívida decorre da necessidade de trânsito em julgado. Dessa forma, caso a atual gestão cometa erros, são as futuras que podem vir a arcar com os precatórios.

Críticas à proposta do governo

Para viabilizar a expansão do Bolsa Família, diante dos R$ 90 bilhões em precatórios a serem pagos, o governo quer fazer uma separação dos “superprecatórios” das dívidas de menor valor, e permitir, assim, que parcele dívidas judiciais acima de R$ 66 milhões. Um Proposta de Emenda à Constituição (PEC), que promova essa mudança, deverá ser encaminhada ao Congresso.

Em seminário na última semana, o ministro da Economia, Paulo Guedes, afirmou que a União não tem como pagar R$ 90 bilhões. Porém, entidades criticaram a proposta de parcelamento das dívidas. Para a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), “a tentativa de desmontar a sistemática constitucional de pagamento revela contornos antidemocráticos, em amplo desrespeito aos direitos dos cidadãos brasileiros, ao regramento firmado pelo Congresso Nacional e à própria autoridade das decisões judiciais”. A PEC, segundo a OAB, seria uma tentativa de calote.

A Instituição Fiscal Independente (IFI), ligada ao Senado, por sua vez, disse que “para 2022, a esta altura do jogo, resta apenas pagar o que é devido”. Ainda de acordo com a IFI, “alterações casuísticas no arcabouço fiscal para comportar o aumento expressivo dessa despesa, em 2022, representariam grave risco à institucionalidade das contas públicas”.

O professor Fernando Scaff também acredita que o parcelamento dos precatórios proposto configuraria um calote: “Isso é uma dívida, não é nem do contrato, isso é uma dívida, ordem judicial transitada em julgado, tem que pagar, não pode fazer isso”. Ele relembra ainda que alguns dos superprecatórios pertencem a estados, ou seja, a União deve ainda para as unidades federativas. Além disso, a mudança nas regras de pagamento, como proposta, pode passar uma impressão negativa para investidores de títulos públicos; “se não estão cumprindo ordem judicial, vão cumprir contrato?”, questiona o professor.

Alternativas na Constituição

Scaff pontua que a própria Constituição fornece duas alternativas ao governo para o pagamento dos precatórios, de modo que, em tese, não precisaria de qualquer PEC agora. Em suas palavras, “se você for olhar o artigo 100, parágrafo 20, da Constituição, lá vai dizer: quando ocorrer uma hipótese de precatórios muito altos, pode haver parcelamento do saldo”. O dispositivo, já regulamentado, segundo ele, permite até mesmo desconto dos valores.

Ainda de acordo com o professor, a Carta Magna possibilita a emissão de título público quando não há dinheiro para pagar as dívidas judiciais. Dessa forma, cobra o Executivo: “Paga os precatórios, quer dizer, honra segurança jurídica, aponta para o mercado que você quer pagar”. Em sua visão, o problema só está ocorrendo porque, se pagar o R$ 90 bilhões, o governo não conseguirá expandir o Bolsa Família e, portanto, o presidente se depararia com um risco para conquistar eleitores no pleito de 2022. “Ou seja, o financiamento da campanha do presidente está gerando essa confusão toda”, opina.

A expansão do Bolsa Família, acrescenta, passa por uma arranjar uma outra fonte de recurso, como o cancelamento de despesas, entre as quais algumas emendas de relator para o Congresso.

Texto originalmente publicado no portal do SBT em 07 de agosto de 2021.