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25/11/20

Se a LDO não for aprovada, como serão realizados os gastos públicos em 2021?

Fernando Facury Scaff*

Estamos prestes a viver algo inusitado no Brasil em termos orçamentários. Estamos no final de novembro e a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), que deveria ter sido votada até 17 de julho, ainda não foi aprovada — isto é, não poderá haver o recesso parlamentar previsto para 22 de dezembro (artigo 57, §2º, CF).

A situação se torna mais peculiar quando se identifica que a Comissão Mista do Orçamento (artigo 166, §1º, CF) está acéfala, por ausência de eleição de seu presidente.

É usual no Brasil a demora na aprovação da Lei Orçamentária Anual (LOA), conforme mencionei em outro texto. A LOA para o ano de 1994 (Lei 8.933) foi aprovada em 9 de novembro de 1994 — governo Itamar — e a LOA para 2016 (Lei 13.332) foi aprovada em 1º de setembro de 2016 — governo Temer.

Ocorre que a situação agora é diversa, pois não se trata de LOA, mas da lei que a precede, necessária para sua elaboração (artigo 165, §2º, CF), que é a LDO.

É verdade que a aprovação da LDO também já sofreu atrasos, tendo sido aprovada apenas em dezembro em 2006, 2014, 2015 e 2016, segundo levantamento efetuado pelo Senado, porém jamais passou de um ano para outro.

Exposto o cenário, quais os problemas à sua frente?

Primeiro, qual o impacto da não aprovação em 2020 da LDO para 2021? Em termos de planejamento é uma lástima, pois o Congresso deixa de opinar sobre os planos do Poder Executivo para o próximo ano, com destaque para dois assuntos: a) qual meta de superavit primário deverá ser perseguida; e b) como deverão ser realizados os gastos públicos em caso de não aprovação da LOA.

A meta de superavit primário impacta diretamente em toda a economia, pois se trata de uma obrigação imposta à União para o pagamento da dívida pública. Pode parecer ao leitor desatento alguma coisa etérea, do mundo da lua, mas não é, considerando que todos os gastos públicos (salários, educação, saúde, segurança pública, meio ambiente, defesa nacional etc.) são contingenciados para que haja o efetivo cumprimento da meta fiscal, isto é, o pagamento da dívida pública, caracterizando-se como uma verdadeira cláusula pétrea orçamentária — expressão melhor detalhada em outro texto. Infelizmente, no Brasil é a meta de superávit fiscal que dirige a política econômica e social, e não a Constituição.

Por outro lado, supondo que não haja a aprovação da LDO e nem da LOA em 2020, como serão realizados os gastos públicos em 2021? É usual constar na LDO que, não sendo aprovada a LOA, os gastos públicos devem se realizar de

modo dozeavado, isto é, usa-se o orçamento aprovado no ano anterior, considerando-se mês a mês. Há orientação específica da Constituição para essa conduta no que tange ao orçamento do Poder Judiciário (artigo 99, §3º), do Ministério Público (artigo 127, §4º) e, de certa forma, da Defensoria Pública (artigo 134, §2º). Porém, para os demais dispêndios, segue-se a usual norma constante das sucessivas LDOs. Não havendo LDO, ou não havendo determinação nesse sentido na LDO, como serão feitos esses dispêndios? Haverá o risco de shutdown, isto é, de paralização da prestação de serviços públicos prestados diretamente pelo poder público por falta de previsão orçamentária para a realização desses gastos? Existe a possibilidade de não serem pagos os salários dos servidores públicos e os demais gastos?

Estivéssemos nos Estados Unidos da América, a resposta seria positiva, como referido em outra coluna, porém, no Brasil, dificilmente se chegará à tal radicalização. Aposto uma garrafa de refrigerante que isso não acontecerá, a despeito da lacuna normativa existente, que será preenchida pelo paralelismo com o que é adotado para o Poder Judiciário e o Ministério Público.

O segundo ponto é igualmente tormentoso, pois se refere à Comissão Mista de Orçamento. É possível aprovar a LDO e a LOA sem análise e o parecer da referida comissão? O argumento político é singelo: quem pode o mais, pode o menos.

Ocorre que o plenário vota pela aprovação ou rejeição do parecer. Logo, como seria essa votação, se não houver parecer? Vai-se discutir tudo em plenário de forma aberta — rubrica a rubrica orçamentária? Isso aponta para a importância central dessa Comissão, que já foi objeto de muitos escândalos, desde o que ficou conhecido dos “anões do orçamento”.

Caso essa venha a ser a solução adotada, haverá clara infringência à Constituição, pois todo o debate orçamentário, inclusive acerca de suas emendas (o que inclui as emendas parlamentares impositivas), deve ocorrer no âmbito desta comissão, conforme determina o artigo 166 em seus parágrafos, que rege o processo legislativo orçamentário.

Todavia, vejo pouca possibilidade de o STF declarar a inconstitucionalidade dessa medida — a despeito de ser inconstitucional —, pois a tensão entre os poderes será enorme, em face da anomia que se apresentará. É mais provável que a decisão seja pela tangente, ou através do adiamento sem fim da decisão, com consequente perda de objeto processual, ou através do entendimento de que não cabe ao STF intervir em matéria de tramitação legislativa, sob a alegação de que se trata de assunto interna corporis de outro poder. Mais uma aposta a ser conferida, se chegarmos a este ponto.

Tudo isso revela o baixo apreço que o sistema político brasileiro dá à matéria orçamentária, tratando-a muito mais como uma norma formal, de procedimento, do que como algo substancial, através da qual se deve cumprir os princípios constitucionais, com especial foco no artigo 3º, que, entre outras metas, objetiva a redução das desigualdades sociais e regionais.

É contra tal análise meramente formalista que algumas vozes se levantam no Direito Financeiro, em prol do uso constitucionalmente adequado desses

recursos, pois não basta que sejam seguidos os procedimentos, mas também perseguidos os objetivos constitucionais, de tal modo que a arrecadação realizada cumpra as finalidades constitucionalmente estabelecidas.

É para isso que a população paga quase 35% do PIB, e ainda se busca arrecadar mais, mesmo durante esta pandemia.

Quem sabe, se houvesse um verdadeiro shutdown à americana, o uso efetivo desses recursos não passasse a ser olhado como prioridade?

*Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e atualmente no exercício da presidência da Comissão de pós-graduação da faculdade.

Texto originalmente publicado no Consultor Jurídico em 24/11/2020