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10/09/24

CONJUR: As redes sociais entre a ágora e a bolha no mundo likes

Fernando Facury Scaff 

Centenas de anos antes do nascimento de Cristo, as cidades gregas tinham em seu espaço urbano uma espécie de praça, chamada ágora, na qual ocorriam debates públicos, fossem culturais ou políticos, com livre exposição de ideias. As pessoas se viam e se escutavam, apoiando ou criticando cada orador ou opinião exposta, com publicidade e transparência ínsitas a uma sociedade republicana. Na ágora grega se revelaram grandes oradores, como Demóstenes (que lutou muito contra sua gagueira original, vencendo-a e se tornando uma referência) e Péricles (o político ateniense, e não o cantor brasileiro). A ágora era o espaço de referência em qualquer cidade grega naquela época.

Milênios depois, o desenvolvimento da tecnologia fez surgir diferentes redes sociais, que se tornaram centrais na vida de bilhões de pessoas. O LinkedIn, por exemplo, é utilizado de forma predominante para atividades profissionais. No Instagram são postados fotos e filmes, com conteúdo pessoal ou comercial, no passado houve o Orkut (quem lembra?), de certa forma sucedido pelo Facebook, que admite textos mais longos, além de fotos e filmes. Há também o YouTube, para filmes, muito difundido. As múltiplas redes são utilizadas ao gosto do usuário, o que varia de país para país, como se vê pelo uso do WhatsApp, que é predominante no Brasil, mas pouco utilizado nos Estados Unidos, onde são mais comuns outros aplicativos de mensagens instantâneas.

É inegável que as redes sociais aproximaram as pessoas tornando o mundo mais plano (nada a ver com terraplanismo e esquisitices semelhantes, mas correlato ao excelente livro do jornalista Thomas Friedman, O Mundo é Plano). As pessoas se aproximaram, mesmo virtualmente, podendo falar em tempo real ou se ver com um singelo toque no telefone celular. Tudo muito diferente da época em que, vindo de Belém para cursar pós-graduação em São Paulo, recebia cartas manuscritas de meus pais com recortes de jornais locais para que soubesse “notícias do mundo de lá”. Falar com eles pelo telefone (fixo, pois não existiam celulares) era uma verdadeira epopeia, tendo que aguardar a linha “dar sinal” e torcer para que a ligação completasse e não caísse.

Evoluímos muito no acesso digital a outras pessoas, a partir de quase todo lugar do mundo, mas, serão as redes sociais substitutas da velha ágora grega, permitindo a livre circulação de ideias?

Penso que não, por vários motivos. Listo alguns.

Na origem, as redes sociais tinham por escopo permitir o encontro de pessoas que haviam se perdido de vista. Funcionavam como uma agenda de endereços digitais, pela qual você buscava quem estava cadastrado e poderia manter ou renovar contatos. O algoritmo fazia com que, ao reiterar determinado perfil de busca, isso fosse replicado de modo sequencial, sempre apresentando um rol de pessoas ou assuntos associados, o que fica bastante nítido no filme A Rede Social, sobre a origem do Facebook.

O passo seguinte foi o uso das redes sociais para fins comerciais, pois quem buscava uma geladeira ou um encanador por seu intermédio, passava a ser inundado de informações sobre esses assuntos nos acessos posteriores. Isso era muito bom para o comércio e para os usuários, que, apenas teclando, passaram a ter acesso a muitas ofertas sobre o produto que buscavam, sem precisar andar de loja em loja para encontrar o menor preço.

Gueto
Posteriormente esse mesmo mecanismo passou a ser usado para fins políticos, partidários ou não, visando influenciar a opinião pública que circula pelas redes sociais. O que era uma busca comercial por bens ou serviços, passou a ser um meio de disseminação de ideias. Cada clique é automaticamente registrado pelo algoritmo, e você passa a receber informações semelhantes ao perfil buscado, tal como ocorre quando busca uma geladeira ou um encanador. Se você navega em sites que pregam o nazismo, muito mais desse conteúdo será apresentado. O filme Privacidade Hackeada, sobre o escândalo da Cambridge Analytica é revelador. Há também um livro excelente sobre o tema, Engenheiros do Caos, de Giuliano da Empoli.

O sistema de algoritmos das redes sociais cria uma bolha, não permitindo que opiniões diversas daquelas que você buscou te sejam apresentadas. Não há ágora, pois quem aparece para debater são as pessoas que pensam igual a você. Quanto mais você dissemina nas redes que ama algo ou alguém, mais o algoritmo te apresentará pessoas com opiniões semelhantes. Se aparece quem se manifeste de forma um pouco diferente, os ânimos se radicalizam e as posições extremas passam a predominar, sendo calado o debate. A regra é que só ganha like quem pensa de modo igual.

Existe ainda a possibilidade de manipulação por meio de robôs, que simulam pessoas reais, expressando as opiniões de quem os controla, e, com isso, dando volume às postagens de determinado indivíduo. São perfis falsos, de pessoas que se escondem atrás de máquinas para gerar uma espécie de efeito manada, pois mais pessoas se sentirão estimuladas a fazer o mesmo, e, quanto maior a quantidade de seguidores, o seguido se tornará um influenciador, o que reforça o perfil da bolha, e não de ágora.

Além disso, cada rede social tem seu dono, que determina a programação do algoritmo, permitindo manipulação tecnológica em prol de quem gerencia a rede. É o algoritmo que seleciona o que você vai ver, embora estimulado por você.

Não há nas redes sociais uma ágora, um espaço público transparente e aberto para o debate plural, que permita oxigenar a democracia, que é a convivência entre pessoas ou opiniões diferentes. Nas redes sociais se vive em uma bolha, espaço fechado de acirramento de ideias iguais, vencendo a mais extremada, fruto da lógica comercial do algoritmo, que oferece para consumo aquilo que mais se gosta e procura. A bolha gera um gueto narcísico, na qual se vive e se convive com ideias e pessoas semelhantes.

É necessário reinventarmos os espaços públicos em nossa sociedade, novas ágoras para a efetiva troca de ideias, o que não ocorre no sistema das redes sociais, estruturadas para serem uma bolha narcísica, sem permitir escutar quem pensa diferente.

Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.

Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 10 de setembro de 2024.