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24/09/24

CONJUR: Os preocupantes processos estruturais e o Direito Financeiro

Fernando Facury Scaff 

Existe um tema que está na ótica dos processualistas que possui importantes impactos financeiros, que é o dos processos estruturais. Dentre a literatura sobre o tema, há um livro coletivo recente, Novos Horizontes do Processo Estruturante (Londrina: Thoth Editora, 2024), organizado por Alberto Bastos Balazeiro, Afonso Pinheiro Rocha e Guilherme Veiga, com prefácio do ministro Luiz Roberto Barroso, que me fez escrever estas mal traçadas linhas sobre o tema. Debrucei-me especificamente sobre o texto Elementos para uma teoria do processo estrutural aplicada ao processo civil brasileiro, de autoria de Fredie Didier Jr., Hermes Zaneti Jr. e Rafael Alexandria de Oliveira, cujos trechos destaco abaixo.

Em abreviada síntese, o que se denomina de processo estrutural ou estruturante decorre de uma leitura do ativismo judicial norte-americano entre as décadas de 1950 e 1970, com “viés muito pragmático”, não havendo “grandes preocupações com a definição analítica ou a categorização sistemática desse tipo de atuação do Poder Judiciário”. A partir daí se analisa casos relevantes, como o Brown vs. Board of Education, ou o Holt vs. Sarver, que são icônicos na literatura jurídica daquele país, em especial no que se refere à afirmação dos direitos fundamentais.

Desse ponto, salta-se para a noção de problema estrutural, que demandaria processos estruturais para sua solução. “O problema estrutural se define pela existência de um estado de desconformidade estruturada – uma situação de ilicitude contínua e permanente ou uma situação de desconformidade, ainda que não propriamente ilícita, no sentido de ser uma situação que não corresponde ao estado de coisas considerado ideal. Como quer que seja, o problema estrutural se configura a partir de um estado de coisas que necessita de reorganização (ou de reestruturação)”, o que não é correlato a uma ilicitude, mas à desconformidade. Por conseguinte, o processo estrutural “veicula um litígio estrutural, pautado num problema estrutural, e em que se pretende alterar esse estado de desconformidade, substituindo-o por um estado de coisas ideal”.

As ADPFs 347, 743 e 709
Isso traz à mente a decisão proferida pelo STF acerca do “estado de coisas inconstitucionais”, proferido na ADPF 347, cuja medida liminar foi relatada pelo ministro Marco Aurélio em 2016 e julgada no mérito em 2023, já sob relatoria do ministro Roberto Barroso.

É relatado que o objetivo imediato do processo estrutural é “alcançar o estado ideal de coisas – um sistema educacional livre de segregação, um sistema prisional em que sejam asseguradas a dignidade do preso e a possibilidade de ressocialização, um sistema de saúde universal e isonômico, e, também, por exemplo, a preservação da empresa recuperanda. Nesses casos, busca-se remover o estado de desconformidade, promovendo uma transição para o estado de conformidade”.

Neste passo, são pertinentes algumas das preocupações manifestadas por Felipe Viégas nesta ConJur (Entre o remédio e o veneno: é preciso impor limites aos processos estruturais). Menciona o autor a ADPF 743, relatada pelo ministro Flávio Dino, que, dentre outras medidas para combater os incêndios no Pantanal e na Amazônia, determinou a abertura de créditos extraordinários, que são créditos a serem abertos por determinação do Poder Executivo. Outro exemplo, antecedente a este, foi a ADPF 709, relatada pelo ministro Barroso, acerca da questão indígena, na qual novos gastos foram determinados por ordem judicial.

Impacto financeiro
Como o foco desta análise é tratar dos processos estruturantes, deixa-se de lado a tormentosa questão da inclusão ou não dessas despesas nos limites de gastos estabelecidos, o que será analisado em outro texto. Registra-se, por ora, apenas o impacto financeiro destas decisões, sem que o Poder Judiciário seja o ordenador de despesas responsável pelos gastos determinados.

No âmbito financeiro, prossegue Felipe Viégas, “o CPC parece ter se transformado em um manual de gestão pública, onde os juízes não apenas julgam, mas também governam. Resta saber se o Judiciário também irá se responsabilizar pelos erros que possam surgir dessa atuação ativista”.

Carta branca
Em paralelo a isso, nesta semana a Comissão de Juristas responsável pela elaboração de um anteprojeto para a Lei do Processo Estrutural no Brasil, entregou para debate seu relatório preliminar com 11 artigos, cujo artigo 1º define o processo estrutural, como sendo “aquele que tem como objeto um conflito coletivo de significativa abrangência social, cuja resolução adequada depende de providências prospectivas, graduais e duradouras”, e, em outra norma, consta que “esta lei aplica-se, no que couber, aos processos estruturais de natureza administrativa ou de controle” (artigo 10, §2º).

Só por esses projetos de norma já se identifica uma carta branca ao Poder Judiciário e aos Tribunais de Contas (que são “órgãos de controle”) para atuar em múltiplas frentes, sem que os limites usuais do processo civil estejam presentes, como a vetusta “coisa julgada”. Parece que se está diante de processos sem fim, tornando-se cada juiz um gestor responsável pelas políticas públicas estabelecidas pelo Poder Legislativo e gerenciadas pelo Poder Executivo. Não há julgamento, há acompanhamento das múltiplas e sequenciais decisões proferidas em espiral.

Compreendo a preocupação do Poder Judiciário com a eficácia de suas decisões, em especial nos casos em que há um problema estruturante submetido a julgamento, mas é necessário ter cautela, sob pena de dar a impressão de que a Separação de Poderes foi julgada inconstitucional, ou tacitamente revogada no Brasil.

Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.

Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 24 de setembro de 2024.