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22/10/24
Fernando Facury Scaff
Recente decisão do Tribunal de Contas da União (TCU) sobre ressarcimento de valores recebidos por doutorando a título de bolsa de pesquisa no exterior merece redobrada atenção por parte dos órgãos de controle, bem como pela comunidade acadêmica, em face de seu ineditismo e senso de justiça, ultrapassando os limites formais de análise que usualmente são adotados.
Pelo que se depreende da leitura da Ata de Julgamento do Acórdão 6.776/24, 2ª Câmara, relatado pelo ministro Marcos Bemquerer Costa, o bolsista do CNPq cursou o doutorado no Canadá entre 2012 e 2016 e não retornou ao Brasil ao final de sua defesa, sendo devedor de R$ 687.664,69 aos cofres públicos. A Tomada de Contas Especial instaurada pelo TCU decorreu do fato de o bolsista “deixar de comprovar o cumprimento obrigatório do período de interstício, (permanência no Brasil pelo mesmo período de vigência da bolsa no exterior)”.
Conforme se verifica pela ata, a linha de defesa adotada foi centrada na depressão severa que acometeu a ex-companheira do bolsista, após o nascimento de seu segundo filho, em 2015, tendo ela retornado ao Brasil para tratamento e o bolsista permanecido no exterior para cuidar da família. A depressão se tornou crônica e, mesmo tendo ela retornado ao Canadá, ocorreu a separação do casal, com guarda compartilhada dos filhos, tendo sido a prioridade do bolsista “garantir o bem-estar e a sobrevivência da sua família, mesmo em circunstâncias extremamente adversas”. Nesse sentido, a defesa do bolsista adotou a tese da exoneração da obrigação de ressarcimento ao erário pois defronte a um “caso fortuito ou força maior em razão do adoecimento de sua esposa combinado com direito a união familiar”.
A auditoria do TCU responsável pela Tomada de Contas Especial refutou todos os argumentos e, com a anuência do Ministério Público junto ao TCU, opinou pela condenação do bolsista, exonerando-o apenas da imposição de 100% de multa sobre aquele valor, de acordo com jurisprudência assente daquela corte.
Entendimento do relator
O voto do ministro Bemquerer, relator do caso, seguiu outro caminho. Entendeu que a norma que exige o retorno ao Brasil por igual período ao que passou no exterior é uma “norma-meio”, que não garante o resultado. Nas palavras do ministro: “o que se exige para atingir essa finalidade é que o beneficiário da bolsa retorne ao país e nele permaneça por igual tempo ao dos estudos, sem que haja qualquer necessidade de comprovação de atuação na área, de transmissão dos conhecimentos adquiridos ou de continuidade dos estudos. Nesse contexto, cumpre trazer à baila o item 7.5 da Resolução Normativa RN/CNPq 007/2018, norma geral de Bolsas no Exterior então vigente: ‘7.5. Retornar ao Brasil, até 30 dias após o término da vigência da bolsa, e permanecer no País por período não inferior ao da vigência da bolsa’”.
O que se busca, segue o ministro, é “a reversão/transmissão desses conhecimentos para outros brasileiros e em prol do próprio país. Esse proveito, todavia, não seria alcançado caso o beneficiário retornasse ao país e, ante a escassez de empregos, trabalhasse em áreas diversas ou mesmo em profissões informais, como motoristas de aplicativos ou outras atividades afins, as quais têm atraído cada vez mais brasileiros com curso superior e de pós-graduação, dada a falta de empregos em determinadas áreas”. Destaca ainda, em seu voto, a criação de valor a partir do conhecimento adquirido no exterior, ainda que isso não ocorra com a presença física do bolsista no país.
Relatou as contribuições do bolsista à ciência brasileira com dedicação à sua área, bem como sua preocupação com a transmissão do conhecimento por meio da apresentação de “estudos específicos de sua área de hidrogeologia, abrangendo textos sobre o aquífero fraturado da região de Jurubatuba/SP, sobre a questão da contaminação das águas no polo industrial de Camaçari/BA, dentre outros projetos de pesquisa que participou ou colaborou e de artigos que publicou sobre questões nacionais”, além da “disseminação dos conhecimentos por ele adquiridos em teses de doutorado em geociências por alunos brasileiros na Universidade de São Paulo (USP), em 2018, 2019 e 2020, a sua participação em grupo de pesquisa do Canadá com projetos no Brasil”, além da facilitação da ida de alunos brasileiros à universidade canadense.
Com isso, o argumento do caso fortuito alegado pela defesa foi relegado à segundo plano, servindo apenas como mitigador da ausência do retorno do bolsista ao país.
Votou pela regularidade das contas, quitando o débito imputado ao bolsista, no que foi acompanhado pelos demais ministros.
Trata-se de uma posição inovadora do TCU, que merece aplausos, pois interpretou a norma afastando sua singela formalidade, que impunha o imediato retorno do bolsista ao país, e analisou sua efetiva atuação em benefício da ciência aplicada ao Brasil, onde quer que o bolsista estivesse, extraindo dados da realidade para sua análise. Conforme se lê da ata, sem analisar os autos, o TCU agiu com justiça, devendo esta decisão se tornar um paradigma no julgamento de casos semelhantes.
Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.
Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 22 de outubro de 2024.