Usamos cookies para melhorar a funcionalidade do nosso site, ao continuar em nossa página você está concordando em recebê-los.
Para obter mais informações, visite nossa Política de Privacidade.
23/04/24
Fernando Facury Scaff
Espero que o caro e raro leitor ou leitora goste de minisséries, pois este é o primeiro episódio em que analiso um tema de extrema importância para vários ramos do direito: financeiro, administrativo, processual, arbitral e constitucional. Demonstrarei que, consoante o ordenamento jurídico atual, a execução de contratos administrativos pode prescindir da expedição de precatórios, caso haja empenho de despesas garantindo a operação.
Inicio analisando aspectos do empenho de despesas, que é regulado pela Lei 4.320/64. Nos próximos episódios quinzenais, veiculados pela ConJur nesta coluna Contas à Vista, tratarei de precatórios, compararei os dois institutos e finalizarei propondo uma interpretação adequada para o artigo 100 da Constituição.
Estou na torcida para que gostem da análise, que tem tudo para ser altamente polêmica, pois subverte a interpretação tradicional e dominante sobre a matéria..
Introdução
Este texto tem como fio condutor a seguinte questão: a existência de empenho afasta a necessidade de expedição de precatório nos casos submetidos ao Poder Judiciário ou a tribunais arbitrais? Caso a resposta seja positiva em quais situações isso ocorre? Qual a interpretação do artigo 100, CF, à luz do exposto?
Segurança jurídica é uma das principais funções do ordenamento jurídico. O orçamento é a lei que dá segurança jurídica no âmbito financeiro para as partes envolvidas em contratos administrativos (poder público e empresas), ao assegurar reserva de valor para a realização do pagamento e garantindo a previsibilidade da execução orçamentária. Isso decorre de diferentes modos de programação orçamentária para que as despesas sejam inseridas no orçamento.
Para atender à segurança jurídica no âmbito financeiro é necessário melhor compreender a programação orçamentária destes dois institutos (empenho e precatório), a fim de distinguir situações que gerarão implicações diversas na execução dos valores, interpretando o artigo 100, CF, que regula a execução das obrigações de pagar transitadas em julgado contra o poder público.
Nos contratos em que existe empenho, há reserva de valor no orçamento corrente, isto é, aquele está sendo executado, decorrente de programação orçamentária anterior.
Não havendo empenho, é necessário realizar programação orçamentária para que o valor seja inserido em Lei Orçamentária futura, a fim de que haja previsibilidade financeira para a realização do pagamento e haja segurança jurídica para as partes envolvidas.
Exigir a expedição de precatórios quando há empenho que garanta os recursos públicos necessários para o pagamento do que foi contratado é um bis in idem, que ignora as diferenças de programação orçamentária e os mecanismos financeiros para dar segurança jurídica e previsibilidade às partes envolvidas.
Em síntese: havendo recursos financeiros garantidos no orçamento corrente através do sistema de empenho, é desnecessário realizar nova programação financeira para sua inserção em orçamento futuro, o que ocorre através do sistema de precatórios.
1. A garantia do empenho de despesas nos contratos administrativos
Nos contratos firmados com o poder público é imprescindível que seja reservado no orçamento o valor correspondente aos gastos contratados, o que é realizado por meio de empenho, característico das contratações envolvendo o setor público. Isso decorre da Lei 4.320/64, que estatui normas gerais de Direito Financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União e dos estados, dos municípios e do Distrito Federal. O artigo 58 não deixa margem para dúvidas.
O caput do artigo 60 da Lei 4.320/64 menciona que o empenho deve ser prévio, ou seja, deve ser realizado por ocasião da firmatura do contrato, e não posteriormente, o que reforça seu caráter garantidor das obrigações contraídas.
A lógica subjacente a essas vetustas normas é a de dar garantia aos contratantes de que o poder público reservou recursos suficientes para fazer frente às obrigações contratuais, e, por conseguinte, lhes dar segurança jurídica e previsibilidade financeira. Por meio do empenho de despesas são reservados fundos financeiros no orçamento para pagar o que tiver sido contratado, criando obrigação de pagamento.
Existem três tipos de empenho de despesas: ordinário, por estimativa e global.
O empenho ordinário é usado para compras de bens ou serviços unitários, cujo contrato se esgota com a singela entrega do bem contratado, como a compra de uma impressora ou de um computador – o preço será determinado e o pagamento ocorrerá na forma contratada, devendo o empenho da despesa refletir o exato montante da transação e as condições das obrigações assumidas.
O empenho por estimativa é usual nas contratações de bens ou serviços cujo montante não seja possível determinar no momento da contratação, estimando-se o montante a ser gasto, que será reservado no orçamento e “baixado” na contabilidade pública na medida em que se determina o exato valor a ser pago. Se o efetivo valor gasto for superior, complementa-se o empenho; caso inferior, o saldo deve retornar como disponibilidade aos cofres públicos. É o usual nos órgãos públicos para empenho de despesas como pagamento do consumo de água, de energia elétrica etc. O exato montante consumido só será identificado quando a conta for apresentada, motivo pelo qual, antecipadamente, o empenho é realizado por estimativa. O artigo 60 da Lei 4.320/64 dispõe sobre esse tipo de empenho: “§2º – Será feito por estimativa o empenho cujo montante não se possa determinar”.
Um terceiro tipo é o empenho global de despesas contratuais, quando sujeitas a parcelamento, igualmente previsto no artigo 60 da Lei 4.320/64: “§3º – É permitido o empenho global de despesas contratuais e outras, sujeitas a parcelamento”. Neste caso, o pagamento ocorrerá parceladamente na medida em que o objeto contratado vier a ser entregue. Um exemplo: uma escola pública adquire 900 carteiras para serem entregues parceladamente, 300 em janeiro, 300 em fevereiro e as 300 finais em março, para pagamento contra a entrega de cada lote. O empenho deverá refletir esse parcelamento de forma atrelada ao cronograma de entrega previsto no contrato.
Pode ocorrer que o valor a ser pago passe de um ano para outro, o que nos leva a duas situações distintas: (1) havendo parcelas a serem pagas relativamente a serviços que foram prestados ou a bens entregues em um ano para pagamento no posterior, o saldo será registrado e incluído em restos a pagar, mencionando que se trata de compromisso assumido pelo poder público com aquele contrato; e (2) havendo ainda serviços ou bens a serem entregues ao longo do período, fruto do tipo contratual de longo prazo, como ocorre em obras públicas, é feito novo empenho no exercício seguinte, pelo saldo, conforme estabelecido pelo §1º, do artigo 30, do Decreto 93.872/86.
No caso de contratação de obras públicas com a utilização de empenho por preço global com reajuste, a característica é que ele fixa um preço global para o projeto, mas permite ajustes periódicos com base em índices de inflação ou outros fatores econômicos. Isso ajuda a mitigar os impactos das variações nos custos, como a inflação, ao longo do período de execução do contrato.
O empenho garante a obrigação contratual firmada, porém apenas a liquidação gera direito adquirido ao contratante ao recebimento dos valores, sendo a matéria regida artigo 63 da Lei 4.320/64.
Liquidação, que gera direito adquirido ao contratante, requer a apuração (§1º, artigo 63, Lei 4.320/64): (1) da origem e do objeto do que se deve pagar; (2) da importância exata a ser paga; (3) de apurar a quem se deve pagar a importância, para extinguir a obrigação.
Tal procedimento de apuração da liquidação da despesa terá por base (§2º, artigo 63, Lei 4.320/64): (1) o contrato, ajuste ou acordo respectivo; (2) a nota de empenho (que pode ser dispensada em alguns casos, conforme §1º, artigo 60, Lei 4.320/64), que é o documento que indicará o nome do credor, a especificação e a importância da despesa, bem como a dedução desta do saldo da dotação própria (artigo 61, Lei 4.320/64), não sendo essencial nos contratos, pois apenas reflete o que deve constar do empenho, este sim, imprescindível para a firmatura dos contratos; e (3) os comprovantes da entrega do material ou da prestação efetiva do serviço.
Na prática, a liquidação ocorre por meio de despacho mencionando que o bem foi entregue conforme contratado, o que pode ocorrer de forma simples, por certificação de um único servidor público, ou de forma complexa, mais usual em obras públicas.
O artigo 63 da Lei 4.320/64 expressamente declara que a liquidação gera direito adquirido ao credor. A dicção normativa bem reflete a realidade jurídica aplicável à situação: não se trata mais de um direito a ser exercido pelo contratante, mas de um direito que foi adquirido pelo contratante, que se torna credor do poder público. Com a liquidação o contratante se transforma em credor, e possui direito adquirido ao recebimento do que foi contratado.
O que era uma garantia (empenho = reserva de valor no orçamento), com a liquidação gera direito adquirido ao pagamento (artigos 64 e 65, Lei 4.320/64), o qual, uma vez ocorrendo, extingue a obrigação contratual.
Retorna-se à figura do restos a pagar, considerando a hipótese dos contratos cuja execução transcende o ano civil (janeiro a dezembro).
Se a execução do contrato já tiver sido liquidada, porém não paga, o valor constante do empenho é inscrito na contabilidade pública como restos a pagar processados, isto é, liquidados e não pagos, o que deverá ocorrer logo após a virada do ano. Ocorrendo o pagamento, o empenho da despesa é “baixado” na contabilidade pública e liberado do orçamento, pois os recursos foram utilizados para quitação da obrigação contratual assumida.
Por outro lado, se ainda não tiver ocorrido a liquidação, o saldo do empenho da despesa é inscrito como restos a pagar não processados, e os recursos permanecem bloqueados no orçamento, até que ocorra a liquidação. Quando esta ocorrer, será processado o pagamento, e o empenho da despesa será liberado no orçamento.
Estas duas situações são relevantes nos casos de obras contratadas por meio de empenho global, que financeiramente segue por dois caminhos paralelos: (1) Como se trata de contratação para serviços plurianuais, o montante do empenho global que remanesce de um ano para outro será novamente empenhado no exercício seguinte pelo saldo, conforme estabelecido pelo artigo 103 da Lei 4.320/64 e pelo §1º, do artigo 30, do Decreto 93.872/86; (2) Se houver alguma parcela não paga referente ao exercício findo relativamente àquele contrato empenhado globalmente, ela será inscrita como restos a pagar, processados ou não, e paga conforme mencionado.
O empenho pode vir a ser anulado (artigo 59, Lei 4.320/64) ou cancelado, devendo o contratado ser formalmente comunicado desse fato, a fim de que adote as medidas administrativas e judiciais que entender adequadas ao caso, para resguardo de seus direitos.
O cancelamento do empenho é um ato unilateral da administração pública, mas sujeito ao contraditório e à ampla defesa, e à exposição da motivação e de justificação dos atos proferidos, o que é determinado pelo artigo 21 da Lei 4.657/42 (Lei de Introdução ao Direito Brasileiro) e pelo artigo 50 da Lei 9.785/99 (Lei do Processo Administrativo Federal). De certa forma isso dará ao ato publicidade e permitirá transparência, ensejando também a possibilidade de controle da moralidade.
Existem disposições legais que enquadram o cancelamento de empenho de forma injustificada como uma conduta que gera improbidade administrativa, podendo ser punida com perda da função pública, suspensão dos direitos políticos e pagamento de multa.
Situação semelhante, porém diversa, ocorre quando há anulação do empenho por vício jurídico (forma incorreta, elaboração por autoridade incompetente, valores inexistentes etc.), sendo que, mesmo nesse caso, deve haver o exercício do contraditório e da ampla defesa, a fim de permitir que o ato ocorra com publicidade e transparência, e possibilitar o controle da moralidade administrativa.
Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.
Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 23 de abril de 2024.