Publicações

Compartilhar

14/11/22

CONJUR: A reforma tributária e a tributação de lucros, dividendos e prolabore

Por Fernando Facury Scaff*

Reforma tributária é um conceito indeterminado, pois cada qual tem a sua, que seguramente visa reduzir sua carga tributária e possivelmente aumentar a do vizinho.

O governo Bolsonaro produziu uma reforma tributária de dimensões gigantescas, estabelecendo um teto para o ICMS — que é dos Estados, ou seja, o fez com o chapéu alheio — sem alterar a Constituição nesse específico ponto.

Todavia, existem diversos projetos em trâmite no Congresso, que se constituem em um pacote tributário desarticulado, composto por duas PECs (45 e 110 — que visam a criar o IBS) e um PL (3.887/20 — que visa à criação da CBS), para reformar o sistema de tributação sobre o consumo, e um PL (2337/21) que visa a reformar a tributação sobre a renda.

Concentremo-nos no PL 2.337 sobre a tributação da renda, que já foi aprovado na Câmara e aguarda análise no Senado. Nele consta o retorno da tributação sobre a distribuição de lucros — objeto de análise neste texto.

Caso avance o retorno dessa tributação, o que me parece nefasto no referido Projeto de Lei, conforme já comentei anteriormente, é necessário e prudente fazer algumas distinções, que não constam no projeto e devem ser incluídas.

É necessário distinguir alguns conceitos importantes, que partem da diferença entre (1) sociedades de pessoas e (2) sociedades de capital, correlacionando-os com (a) lucros, (b) dividendos e (c) prolabore.

Sociedades de pessoas são aquelas que congregam pessoas identificadas, sócios, que buscam em comum objetivos estabelecidos no contrato social. Todos devem possuir o que é conhecido em Direito como affectio societatis, isto é, afeto societário comum, de união de esforços. Os sócios são pessoas que possuem interesse em comum e se conhecem e se reconhecem nesse esforço. Exemplo padrão: uma pequena empresa familiar, cujo capital é composto pelas economias juntadas ao longo de anos, em que um cuida das vendas, outro das compras e um terceiro do caixa. Em todas as sociedades de pessoas é vital o conhecimento pessoal entre os sócios e o desinteresse de um pode levá-lo a sair da sociedade, em busca de novos rumos profissionais. Caso isso ocorra, a entrada de um novo sócio terá que ser precedida da expressa aceitação dos demais. Haverá subjetividade na escolha das pessoas que compõem este tipo de sociedade, normalmente organizada sob a forma de sociedades limitadas.

Sociedades de capital possuem outra dinâmica. Não existem sócios, mas acionistas, que não se conhecem e muito menos se reconhecem. O patrimônio da empresa é dividido em ações, e os acionistas são investidores, com o exclusivo intuito de obtenção de lucros decorrentes do capital investido. Não há affectio societatis nas sociedades de capital, que usualmente são grandes empresas, e buscam se capitalizar através da oferta de ações (partes de seu patrimônio) em bolsas de valores. Daí decorre uma enormidade de regras estabelecidas pela Lei das Sociedades Anônimas acerca da obrigatoriedade da distribuição de lucros por ação, após a constituição de reservas societárias. Entram e saem acionistas através da negociação de suas ações, sem que se saiba quem são, e sem que isso seja especialmente relevante.

A distinção acima esboçada entre empresas organizadas sob a forma de sociedades de pessoas ou de capital, tem um importante diferencial na questão do tratamento do lucro.

Como se sabe, qualquer empresa busca a obtenção de lucros, que podem ou não ocorrer, ou seja, existe uma álea, uma incerteza, se haverá lucro ao final de um período. Afinal, a empresa pode, legitima e legalmente, ter prejuízo.

Aqui reside uma diferença primordial. Havendo prejuízo nas sociedades de pessoas, os sócios podem ser obrigados a colocar mais dinheiro na empresa (aportar capital) para ela sobreviver. Havendo prejuízo nas sociedades de capital os acionistas jamais serão obrigados a aportar capital, apenas não receberão lucros e o valor de suas ações será reduzido — ou seja, perderão parte do valor investido na compra de suas ações, as quais poderão ser imediatamente vendidas, sem necessidade de anuência dos demais acionistas.

Isso gera diferentes espécies de responsabilidades societárias — mas tratar desse aspecto foge do escopo tributário do texto.

O ponto é: existe diferença entre o lucro das sociedades de pessoas e o das sociedades de capital. O lucro na sociedade de pessoas remunera primordialmente o trabalho dos sócios. O lucro na sociedade de capital remunera exclusivamente o capital investido.

Daí a razão de ser importante diferenciar no projeto de reforma tributária sobre a renda (PL 2.337) a incidência desse imposto sobre lucros advindo de sociedades de pessoas e de sociedades de capital. Tecnicamente, o lucro distribuído pelas sociedades de pessoas se denomina lucro, e o distribuído pelas sociedades de capital se denomina dividendo — que é pago por cada ação que o investidor possui.

Outro conceito importante, e correlato ao que foi acima exposto é o de prolabore, o qual se assemelha enormemente ao de salário, pois corresponde ao que é pago ao administrador da sociedade (seja a de pessoas, seja a de capital). O prolabore é devido a quem administra a sociedade, seja ou não sócio ou acionista. Neste caso a tributação pelo imposto de renda segue o mesmo padrão do pagamento dos salários pela empresa.

Em apertada síntese, pode-se identificar três situações diferentes de remuneração das pessoas envolvidas nas empresas. A dos sócios, nas sociedades de pessoas. A dos acionistas, nas sociedades de capital. E a dos administradores, que gerenciam as sociedades, tenham ou não participação no capital da empresa, que são remunerados em função de seu trabalho na gestão.

Logo, para que seja cumprido o mandamento constitucional da isonomia, que implica em tratar desigualmente os desiguais, na medida de suas diferenças, é importante que o Projeto de Lei 2.337, em trâmite no Senado, considere que (1) o lucro distribuído aos sócios tenha tributação distinta daquele (2) distribuído aos acionistas, que buscam remuneração sobre o investimento realizado, e também que (3) seja diferente do prolabore pago aos administradores.

Sendo assim, caso o Projeto de Lei decida recriar a tributação sobre a distribuição de lucros — o que será um erro, conforme já expus — seria adequado, ao menos, distinguir entre as situações acima demonstradas, de tal modo que: (1) seja mantida a isenção do lucro distribuído aos sócios, nas sociedades de pessoas; (2) ocorra a tributação dos dividendos distribuídos aos acionistas nas sociedades de capital, em igual parâmetro com as demais operações de capital já tributadas pelo imposto de renda; e (3) seja mantida, como atualmente, a tributação sobre o prolabore pago aos administradores.

O erro de tributar a distribuição dos lucros poderá ser minimizada caso essa distinção venha a ser adotada pelo PL 2.337 em debate no Senado. Espera que haja quem ouça e trabalhe nesse sentido naquela Casa Legislativa.

Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.

Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em  14 de novembro de 2022.