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24/05/22
Por Fernando Facury Scaff*
No dia 27 de abril ocorreu a entrega de um documento importantíssimo para a correta discussão da necessária reforma tributária, que deve ocorrer desde já no âmbito infraconstitucional. Trata-se do Diagnóstico do Contencioso Tributário Administrativo, fruto de uma parceria entre a Receita Federal do Brasil e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), realizado pela Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ), iniciado à época em que José Barroso Tostes era secretário da Receita Federal, e tendo à frente a competente e incansável Fátima Cartaxo. Como o nome indica, o objetivo foi apresentar um raio-X da litigância tributária administrativa em nosso país, em todos os níveis federativos.
No seminário realizado na mesma data diversos aspectos foram discutidos, tendo o referido documento como pontapé inicial dos debates, e não seu apito final. Recomendo ler o documento e assistir o vídeo do seminário (veja aqui), no qual participaram diversas autoridades do setor público, nacional e internacional, além de representantes da academia, como a professora Misabel Derzi e os professores Heleno Torres e Eurico de Santi, com a finalidade de obter um olhar plural sobre o assunto.
Tive a honra de ser convidado para compor um dos painéis do seminário, no qual se discutiu os impactos econômicos e incentivos da litigiosidade tributária (no link acima, entre 5:38 e 6:41 minutos), em conjunto com José de Assis Ferraz Neto (subsecretário-geral da Receita Federal), Ricardo Gazel (consultor do BID), Anne Caroline Alves (do Ministério da Economia) e Andrea Lemgruber (do FMI), com os quais aprendi bastante. Nos dez minutos que dispunha, destaquei alguns pontos que me parecem merecer mais detida atenção, e que reproduzo abaixo visando colaborar para a análise do tema.
Uma primeira observação é que o Diagnóstico do Contencioso Administrativo deve ser compatibilizado com o Diagnóstico do Contencioso Judicial, que está sendo coordenado no âmbito do Conselho Nacional de Justiça, igualmente financiado pelo BID, e realizado pelo Insper, apresentado em fevereiro deste ano (veja aqui), cujo primeiro resultado foi a criação pelo STF e pelo Senado de uma comissão de juristas para modernizar a legislação do processo administrativo e judicial tributário, presidida pela ministra Regina Helena Costa, do STJ, o que já prenuncia um trabalho de qualidade.
É inegável que o foco central deve ser a ampliação da segurança jurídica no sistema tributário e a busca de justiça fiscal, evitando procrastinações e tornando-o mais eficaz. Isso diminuirá o risco Brasil, aumentando a certeza jurídica e tornando mais justa a relação entre as empresas, pois se uma paga e a outra não o faz, o impacto concorrencial é enorme. É inadequado considerar que os contribuintes litigam porque são fraudadores ou sonegadores, o que é comprovado pelo Diagnóstico, ao indicar que cerca de metade dos litígios administrativos é vencida pelos Fiscos, e a outra pelos contribuintes. Um capítulo à parte é a questão dos devedores contumazes (leia aqui), que devem receber tratamento diferenciado em razão disso.
Deve-se ainda ampliar o olhar para as análises efetuadas pelo Tribunal de Contas da União, que faz relatórios profundos sobre o estoque da dívida ativa da União, que impacta fortemente as receitas públicas e traz recomendações procedimentais a serem adotadas pela Receita Federal – que deve ser prestigiada e reequipada, o que não tem ocorrido nos últimos anos e se revela nefasto.
Outro aspecto relevante é observar com maior atenção o Anexo de Riscos Fiscais que anualmente compõe a Lei de Diretrizes Orçamentárias, demonstrando as possíveis perdas judiciais e seu impacto nas contas públicas. É necessário levar tal análise a sério, para que não surjam argumentos ridículos como o de que apareceu um cometa e atingiu o orçamento anual, tal como fez o ministro Guedes acerca dos precatórios, ou da surpresa fiscal no caso da retirada do ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins, previsível quase uma década antes da decisão final.
Deve-se também ampliar a coordenação entre as ações da PFN e as da Receita Federal, a fim de evitar procedimentos e orientações contraditórias, que exacerbam as duvidas entre os contribuintes, aumentando as incertezas.
Além disso, deve-se criar uma norma para que seja possível dar baixa dos créditos incobráveis, uma espécie de write off do crédito público. Um exemplo: será que a União ainda receberá algum centavo de seus créditos fiscais da Transbrasil ou da Vasp? Penso que não, a despeito de não ter dados concretos a respeito. Porém tais créditos ainda compõem a base da dívida ativa da União, distorcendo completamente os dados. Isso indica que deve haver uma análise mais detalhada entre o estoque e a dinâmica da dívida ativa, pois uma coisa é o montante acumulado desse ativo, muitas vezes incobrável (sem baixas), e outra coisa é a dinâmica desse acúmulo, ano a ano. Muitas vezes é mais adequado olhar para a dinâmica do que para o estoque desses créditos públicos.
Também merece atenção é o valor exorbitante das multas fiscais, em todos os níveis federativos. A hiperinflação do século passado foi vencida pelo Plano Real, mas os Fiscos não reduziram as astronômicas multas previstas em suas legislações, o que leva a periódicos Refis, cujo objetivo primordial é reduzir multas para patamares (quase) civilizados. Deve-se ajustar isso, aproximando as multas dos percentuais que se pratica no setor privado, conforme expus em outro texto.
Existem ainda custos indiretos que oneram sobremaneira o contencioso como um todo. Em algumas legislações, apenas por passar da fase administrativa (Receita) para a de cobrança judicial (procuradorias), o montante chega a aumentar 10%, o que não tem justificativa. Além disso, existem os honorários advocatícios dos procuradores, já remunerados pelos cofres públicos, e que são apropriados privadamente. Todavia, se o Fisco perde a demanda, os honorários de sucumbência dos advogados privados são pagos pelos cofres públicos, o que não se reflete equânime.
Penso que devem ser mantidos os tribunais administrativos – advoguei no vetusto Conselho de Contribuintes –, porém alguns ajustes devem ser realizados. No âmbito do Carf, não se justifica existirem dois níveis de conselheiros, o que se identifica pelas diferentes remunerações e pelas relações de poder, que geram muitas distorções entre os julgadores – trabalho igual e paritário deve gerar idêntica remuneração. Ouvi dizer que as conselheiras indicadas pelos contribuintes sequer possuem direito a licença-maternidade (é tão espantoso que não acreditei na informação). Isso também não é equânime e deve ser revertido.
Outra sugestão para meditação, que remonta a Geraldo Ataliba (cito de memória), é levar diretamente aos tribunais as decisões do Carf contrárias aos contribuintes, sem a repetição da fase probatória no âmbito judicial, caso essa tenha sido produzida de forma satisfatória no âmbito administrativo, pois agilizaria o processo judicial. É necessário avaliar tal antiga sugestão à luz contemporânea.
É necessário ampliar também a confiança recíproca entre Fisco e contribuintes. Um exemplo negativo: é inadequado que após a decisão do STF acerca do voto de qualidade (na verdade, voto duplo) tenha sido exarada pelo ministro Guedes a Portaria 260/2020, ressignificando seu sentido. Assim não funciona a confiança recíproca.
Um tópico de especial relevo para a análise do diagnóstico diz respeito ao federalismo. Se advier uma norma nacional regulando a matéria, deve-se considerar que vivemos em um país com grandes assimetrias, e que o federalismo deve espelhar isso. Logo, ao mesmo tempo que padronizar é positivo, deve-se manter espaços para o efetivo exercício da autonomia de estados e municípios. Um exemplo: estabelecer em X o número de julgadores pode se revelar pequeno para o município de São Paulo, porém enorme para o município de Boa Vista, mesmo sendo ambas capitais de estados. Logo, é necessário ter cautela e respeitar as autonomias em um país de necessário federalismo assimétrico. Uma sugestão: financiar a adoção pelos estados e municípios de um sistema semelhante ao Perdcomp federal – todos sairiam ganhando com isso (existe precedente para tal tipo de financiamento na LRF).
Quanto aos meios alternativos de composição, penso que se deve ampliar as hipóteses de transação, hoje extremamente modestas e dirigidas a setores específicos, sem que haja clareza republicana em sua escolha – pode-se avançar bastante nesse aspecto. É também adequado revisar o instituto da consulta tributária, que foi bastante deturpado ao longo do tempo. Atualmente, em muitos Fiscos, a resposta ou é evasiva, o que de nada adiante, ou é sempre contrária aos contribuintes – raramente se vê uma resposta favorável. É necessário recuperar esse importante instrumento preventivo de litígios.
Outro procedimento preventivo adequado é o da autorregularização, mas que deve ser acompanhado de diálogo, pois, em muitos Fiscos, o que se verifica é apenas uma etapa burocrática a ser vencida, o que deturpa a ideia inicial. Deve funcionar muito mais como autocomposição, e não uma oferta surda e muda de autorregularização.
Nessa linha, leis que tragam sanções premiais, como a do estado de São Paulo, batizada de “Nos conformes” é positiva, embora, mesmo esta, necessite de aperfeiçoamento.
Durante o seminário, uma autoridade pública aventou a possibilidade de ressurgir o famigerado depósito recursal administrativo. Tenho a esperança de que ninguém ressuscite esse fantasma já declarado inconstitucional.
Enfim, penso que este é o caminho certo a ser trilhado, o de uma reforma tributária infraconstitucional, arquivando os projetos de lei e de mudança constitucional ora em curso no Congresso, sem perder de vista que, qualquer inovação legislativa nesse âmbito tem o potencial de, em um primeiro momento, aumentar a judicialização da matéria – o que não é um óbice para avançarmos, mas deve ser levado em consideração para evitar desilusões.
Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.
Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 02 de maio de 2022.