Publicações

Compartilhar

17/10/22

CONJUR: A tributação dos créditos de carbono e dos serviços ambientais

Por Fernando Facury Scaff*

Para quem não tem a menor noção do que seja o mercado de créditos de carbono, tentarei resumir em poucas palavras, buscando ser didático. Exatamente por esse motivo, não detalharei aspectos referentes ao Protocolo de Kyoto e ao Acordo de Paris, em especial ao seu artigo 6º, que prevê dois tipos de mercado de carbono: o entre países e o entre partes privadas. Vou direto ao mercado de carbono entre partes privadas.

Algumas atividades impactam o meio ambiente atmosférico, através da produção de dióxido de carbono (que gera o efeito estufa — aumento do calor no planeta); outras atividades reduzem o impacto dessa poluição, através da produção de carbono. Isso é assim desde que o mundo surgiu.

Ocorre que as atividades poluentes vêm se intensificando e a preocupação ecológica se acentuando. Daí surgiu a ideia de criação de um mercado de carbono, pelo qual as atividades poluentes devem compensar suas emissões através do uso ou da compra de créditos de carbono, de quem os produz. Havendo lei que obrigue a realização dessa compensação, teremos um mercado regulado; caso contrário, haverá um mercado voluntário (ou livre), pelo qual as empresas buscam compensar suas emissões de carbono por força de norma moral ou equivalente (não-legal), como ocorre no Brasil atual – aqui entram as diretrizes ESG (Environmental, Social and Governance) — que brasileiramente traduzo por Ecologia, Socioambiente e Governança —, de obediência voluntária pelas empresas.

Esquematicamente algumas situações podem vir a ocorrer: (1) existem atividades que geram poluição atmosférica; (2) existem outras atividades que combatem a poluição atmosférica; e (3) existem aquelas situações mistas, nas quais a mesma empresa desenvolve atividades que são poluentes e outras que reduzem o impacto poluidor. Exemplo: uma empresa do agronegócio polui a atmosfera (situação 1); porém possui área de reserva legal, mantendo intacta uma parcela de vegetação nativa, que seguramente reduz essa poluição (situação 2); assim, ao mesmo tempo, desenvolve atividade poluidora e conservativa (situação 3). Neste último caso, se o balanço ecológico demonstrar que os créditos de carbono emitidos são insuficientes para cobrir os débitos de emissão de poluentes na atmosfera, a empresa deverá adquirir no mercado os créditos que faltam, fazendo-o dentre aquelas empresas superavitárias na emissão de carbono.

Observe-se, a latere, que a criação desse mercado de créditos de carbono decorre da financeirização do meio ambiente, pois transforma as preocupações ecológicas em créditos passíveis de compensação entre as empresas — daí se pode até mesmo falar em um direito financeiro ambiental, mas esse é um assunto para outro texto (no espaço próprio da coluna Contas à Vista).

O fato é que esse mercado financeiro ambiental de créditos de carbono nos coloca defronte a algumas situações que seguramente trazem impacto tributário — objeto da presente análise (coluna Justiça Tributária). Buscando permanecer didático, dividirei a análise tributária em duas partes: (1) na geração do crédito de carbono e (2) na comercialização do crédito.

Como é gerado um crédito de carbono? Através de certificação, que é realizada por empresas especializadas. Elas que afirmarão, com credibilidade, quantos créditos de carbono gera o gramado do Maracanã, ou um alqueire de soja, ou um hectare de floresta nativa. A depender do tipo de vegetação, dentre outros fatores, haverá a geração de mais ou menos créditos de carbono, o que deverá ser certificado por uma empresa especializada. Não basta ter a área verde, é necessário apurar, mensurar, certificar e cartularizar a existência desses créditos, a fim de que possam ser negociados. Logo, neste passo, há a criação de um ativo, de um crédito, para a empresa, que, no mercado livre (voluntário), servirá para uma finalidade específica, que é a de compensar a emissão de poluentes, seja através de uso dos próprios créditos, seja através de compra e venda, seguindo a correlação de que um crédito de carbono compensa uma tonelada de poluentes emitidos.

Este crédito é uma representação financeira de um recurso natural não renovável, ou seja, esgotável/perecível. Logo, devem ser realizadas certificações periódicas a fim de demonstrar que aquela área verde, geradora de créditos, permanece íntegra. Sendo assim, serão necessárias certificações periódicas para a geração de novos créditos.

Essa geração de créditos de carbono gera tributação? Embora seja um tema muito novo, o que acarreta a necessidade de maior reflexão, em uma análise preliminar arrisco afirmar que não, fazendo um paralelo: o crescimento vegetativo do rebanho, através da geração de novos bezerros, não acarreta qualquer tributação. Só quando o bezerro é comercializado é que ocorrem incidências tributárias, não pelo singelo fato de ele ter sido gerado (CPC 29). Logo, entendo, ainda de forma preliminar, que não há tributação na geração dos créditos de carbono. Claro que tais créditos só existem se forem certificados, e devem ser contabilizados, mas não geram tributação.

Haverá tributação na comercialização dos créditos de carbono? Ainda aqui é necessária muita cautela, pois o debate tem sido pautado pela classificação contábil do referido crédito, se financeiro ou se intangível, com consequências tributárias diferentes em cada situação, como exposto com muita acuidade por diversos autores em relevante análise, e reafirmado por Diego Castelo Branco, Gabriel Águila e Thiago Maia em evento recente. Embora sejam análises importantes, penso ser necessário deslocar o olhar e dar um passo atrás, a fim de verificar se, para o direito ambiental, os créditos de carbono se enquadram como serviços ambientais — observe-se que isso fará toda a diferença (para melhor compreensão recomendo a leitura do livro de Ana Maria Nusdeo — Pagamento por serviços ambientais. Sustentabilidade e disciplina jurídica. São Paulo: Editora Atlas, 2012).

A Lei 14.119, de 13 de janeiro de 2021, instituiu a Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais, tendo conceituado no artigo 2º, II, que são serviços ecossistêmicos os “benefícios relevantes para a sociedade gerados pelos ecossistemas, em termos de manutenção, recuperação ou melhoria das condições ambientais, nas seguintes modalidades: (‘c’) serviços de regulação: os que concorrem para a manutenção da estabilidade dos processos ecossistêmicos, tais como o sequestro de carbono, a purificação do ar, a moderação de eventos climáticos extremos, …”. Portanto, entende-se como inserto no artigo 2º, II, “c” da Lei 14.119/21 o mercado de créditos de carbono.

Além disso, o artigo 2º, IV, definiu que pagamento por serviços ambientais é uma “transação de natureza voluntária, mediante a qual um pagador de serviços ambientais transfere a um provedor desses serviços recursos financeiros ou outra forma de remuneração, nas condições acertadas, respeitadas as disposições legais e regulamentares pertinentes”.

Ocorre que nosso presidente da República vetou o artigo 17 da referida lei, que dispunha sobre os efeitos tributários dos pagamentos por serviços ambientais, os quais não integrariam a base de cálculo do Imposto sobre a Renda (IR), da CSLL, do PIS e da Cofins.

Acertadamente, corrigindo o erro do presidente, o Congresso Nacional rejeitou o veto, e em 10 de junho de 2021 o artigo 17 da Lei 14.111/21 passou a vigorar, afastando o IR, a CSLL, o Pis e a Cofins dos valores decorrentes de pagamento por serviços ambientais. É com base nesse entendimento, decorrente do enquadramento do mercado de crédito de carbono como uma espécie de pagamento por serviços ambientais, que a tributação federal acima referida foi afastada, caracterizando-se como uma isenção total sobre tais receitas. Poderia me alongar, mas o espaço é curto e existem outros aspectos a serem tratados.

Resta analisar a tributação estadual e municipal. A comercialização desses créditos está sujeita ao ICMS ou ao ISS? São serviços ou mercadorias?

Sigo outro caminho. Os créditos de carbono são créditos que surgem após a certificação sobre a área ambiental inventariada, e se caracterizam como sendo ativos financeiros, exatamente como definido pelo Decreto 11.075/22, artigo 2º, I, literis: “crédito de carbono: ativo financeiro, ambiental, transferível e representativo de redução ou remoção de uma tonelada de dióxido de carbono equivalente, que tenha sido reconhecido e emitido como crédito no mercado voluntário ou regulado”. Logo, considerando a situação atual das normas e do debate acadêmico, considero que a incidência sobre a comercialização dos créditos de carbono, que são ativos financeiros, é a do IOF, e não o ISS ou ICMS. Lembremos que IOF representa tecnicamente incidência sobre operações (1) de crédito, (2) câmbio, (3) seguro, e (4) relativas a títulos ou valores mobiliários, o que permite sua inserção nesta última hipótese, a depender de lei que o preveja.

A despeito de ter afirmado acima que os créditos de carbono se caracterizam como serviços ambientais, eles não são exatamente um serviço para fins de incidência do ISS — não podemos cair no risco do nominalismo. Por outro lado, não se está comercializando uma mercadoria ou um bem, mas créditos, o que afasta o ICMS e atrai o IOF.

Alguém observará que tais conclusões praticamente afastam qualquer tributação sobre a comercialização de créditos de carbono — no que estará correto. A baixa carga fiscal é a forma pela qual o direito tributário contribui para o meio ambiente, bem como o direito financeiro contribuiu na criação do mercado de carbono. Está corretíssimo afastar o máximo possível a tributação sobre esse mercado, a fim de ampliar a proteção ambiental e ajudar a concretizar o artigo 225, CF, que assegura a todos o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Como o foco da exposição é a tributação dos créditos de carbono, deixarei para outra ocasião (1) a crítica à utilização desse sistema, que, na verdade, é um sistema de soma zero, (2) bem como sua análise comparativa com o sistema de Fundos (como o do Fundo Amazônia, criado pelo Decreto n. 6.527/08, e inviabilizado pelo atual governo — Decretos 9.759/19, 10.144/19 e 10.223/20), com (3) o sistema de tributação mais oneroso das atividades poluentes, e com (4) a fórmula que prevê uma tributação mais onerosa aos países mais poluidores. Este parágrafo final aponta, como nas novelas, para cenas dos próximos capítulos.

Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.

Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em  17 de outubro de 2022.