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21/08/23
Por Fernando Facury Scaff*
A esta altura das discussões sobre a PEC 45-A, cujo debate se inicia no Senado, já se sabe que ela contém dois novos impostos e duas novas contribuições. Os impostos são o IBS — Imposto sobre Bens e Serviços, estadual, que substituirá o ICMS e o ISS, e o IS — Imposto Seletivo, que se assemelha ao IPI, com outras características, já analisadas. E as duas contribuições são a CBS — Contribuição sobre Bens e Serviços, federal, que substituirá o PIS e a Cofins, e a contribuição estadual sobre produtos primários e semielaborados.
Este texto trata apenas desta contribuição estadual, que se constitui em uma novidade “de museu”, pois nos leva a um passado de todo inglório.
Na versão originalmente distribuída, constava do artigo 20, e na que foi formalmente enviada ao Senado, está grafada no artigo 19, assim redigido:
“Art. 19. Os Estados e o Distrito Federal poderão instituir contribuição sobre produtos primários e semielaborados, produzidos nos respectivos territórios, para investimento em obras de infraestrutura e habitação, em substituição a contribuição a fundos estaduais, estabelecida como condição à aplicação de diferimento, de regime especial ou de outro tratamento diferenciado, relacionados com o imposto de que trata o art. 155, II, da Constituição Federal, prevista na respectiva legislação estadual em 30 de abril de 2023.
Parágrafo único. O disposto neste artigo aplica-se até 31 de dezembro de 2043.”
Observa-se que se trata de um gigantesco jabuti inserido no último segundo do último minuto da votação na Câmara, a qual descumpriu todos os prazos e trâmites do devido processo legal legislativo. Essa norma não foi formulada pelos proponentes da PEC, tendo surgido na calada da noite da votação.
Sua origem vem sendo atribuída a diversos governadores, liderados por Ronaldo Caiado, de Goiás, que, de forma inteligente, previu a camisa de força fiscal que a PEC 45-A imporá aos estados, e tratou de assegurar a manutenção de uma fonte extra de receita. A busca foi pela afirmação da constitucionalidade de contribuições supostamente voluntárias, criadas por diversos estados, como a Fethab, de Mato Grosso do Sul, e o Fundeinfra, de Goiás, ambas sob fogo no STF, todas criadas em decorrência do Convênio Confaz 42/16, já comentado (ver aqui; aqui: e aqui, dentre outros).
Ocorre que o texto aprovado, e ora sob análise no Senado, é muito pior do que esses fundos, pois ressuscita um debate dos primórdios da Constituição de 1988. Por erro, a Constituição originalmente previa a possibilidade de os estados cobrarem ICMS sobre a exportação de produtos semielaborados (ver artigo 155, §2º, X, “a”, na redação original, que foi alterada pela EC 42/03), o que gerou a edição do Convênio ICM 66/88, que ocasionou uma confusão que perdura até os dias atuais.
O problema dizia respeito à questão da tributação da exportação pelos estados. Em qualquer país, o comércio exterior é preocupação da União, que o regula e o incentiva a fim de acumular divisas. A redação original da Constituição criou um paradoxo ao permitir que os estados tributassem o comércio exterior, pois estes visavam arrecadar, tributando as exportações, que se tornavam mais caras e não competitivas no mercado internacional, prejudicando o país como um todo. Isso gerou um gigantesco contencioso que só foi encerrado com a Lei Kandir (Lei Complementar 87/96) e a EC 43/03, que impediram os estados de tributar as exportações e criaram um mecanismo de compensação denominado Fundo da Lei Kandir, que gerou outros debates no STF, parcialmente solucionados pela ADO 25 e pela Lei Complementar 176/20, mas que deixaram os exportadores sem receber os resíduos tributários das exportações.
O artigo 19 da PEC 45-A ressuscita esse problema, como um museu de grandes novidades, e o piora ainda mais, pois permite que os estados tributem o consumo interno de semielaborados e produtos primários, o que quebra a lógica do sistema que se pretende criar, de um IVA dual sobre bens e serviços, no qual os estados só poderão arrecadar através do IBS. Isso aponta para vários problemas federativos, muito bem expostos por Hamilton Dias de Souza ao criticar a falsa dualidade desse tributo.
Na prática, o que pretendem alguns estados é manter uma fonte de receita já existente, e contestada perante o STF.
Isso deve despertar os senadores para outro problema, que não está no texto da PEC, que é o da manutenção da competência tributária da União para criar outras contribuições, o que vem permitindo a esse ente federativo exercer a imaginação tributária para aumentar sua arrecadação além de qualquer limite, vide Pis, Cofins, Cides diversas, CSLL, salário-educação etc., que geram uma lista sem fim.
Como crítica construtiva à PEC 45-A sugiro duas alterações no Senado: 1ª) estabelecer nas disposições transitórias que a União não poderá criar novas contribuições além das já existentes; e 2ª) simplesmente eliminar o artigo 19 da PEC 45-A.
Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.
Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 21 de agosto de 2023.