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06/02/23
Por Fernando Facury Scaff*
Existem bois e manadas. E há quem financie e conduza as manadas. Isso pode parecer um debate zoológico, mas é direito financeiro — além de direito penal.
Uma manada entrou na Praça dos Três Poderes em Brasília no domingo, 8 de janeiro de 2023, e promoveu uma baderna, quebrando e violando o patrimônio público — tanto o material, quanto o imaterial, em especial a imagem da democracia brasileira no mundo. Uns executaram os atos, outros os financiaram, terceiros lideraram — e por aí segue, em uma cadeia de comando, afinal, manadas não agem e nem se mantém sozinhas.
Repetiram, como macacos de imitação, a invasão do Congresso norte-americano. Quando isso ocorreu lá, em 6/1/21, o responsável ainda estava no poder e buscava nele se manter, estimulando os infratores. Aqui, o principal incentivador dos protestos durante quatro anos, já havia se refugiado nos Estados Unidos, ao invés de cumprir seus deveres cívicos para com o governo eleito. Lá, buscava-se impedir a proclamação formal do resultado; aqui a invasão ocorreu em um domingo, dia de descanso, e antes do início dos trabalhos legislativos e judiciais do ano, quase um mês após a proclamação formal dos resultados e da posse. Daí porque penso ser impreciso identificar a manada como sendo composta por golpistas ou baderneiros. São terroristas, pois o objetivo foi o de espalhar o terror pelo Brasil.
Em ambos os casos a fonte da discórdia é o não reconhecimento do resultado das eleições, pois os dois ex-presidentes não se conformam com a derrota. Só reconheceriam como legítimo o resultado se tivessem sido eleitos. Aqui está a gênese do problema: para a democracia funcionar adequadamente é necessário que haja vencedores e perdedores, e o perdedor tem que reconhecer sua derrota e aguardar as próximas eleições para buscar retornar ao poder — a isto se chama respeitar o resultado das urnas e agir “dentro das quatro linhas” do jogo.
Ao não reconhecer a derrota, estimula protestos, sob o argumento de “fraude ao resultado”, consequentemente, o governo eleito não teria legitimidade para o exercício do poder e não deve ser respeitado. Agir assim não é liberdade de expressão, pois esta é limitada pela democracia quando busca anular a própria democracia. Não se pode falar qualquer coisa sobre qualquer coisa, quando o objetivo é destruir a ordem constitucional. O incessante ataque ao resultado eleitoral e às Instituições, intensificado nas redes sociais, impede que haja a pacificação social necessária para o desenvolvimento do país. Sem ela, não há segurança para realizar os devidos investimentos sociais e econômicos.
Estes fatos geram pelo menos três diferentes tipos de responsabilização, sempre com os olhos voltados ao devido processo legal e à ampla defesa.
A identificação da responsabilidade penal está em curso, inicialmente centrada nos bois e na manada, e, espera-se, também em quem financiou e liderou a manada. A principal consequência penal será cercear a liberdade de ir e vir da manada, seus financiadores e líderes — ou seja, prisão.
Há também a responsabilidade política, pois parte da manada e de seus líderes e financiadores têm nítidos interesses eleitorais ou reeleitorais, além de alguns deles exercerem cargos públicos. Logo, será uma afronta à democracia caso não sejam impedidos de ingressar ou de se manter na vida política, afastando temporariamente seu direito de serem votados ou de participarem de atividades partidárias.
É também necessário responsabilizar financeiramente essas pessoas, a fim de que paguem pelos danos físicos e imateriais ocasionados. Alguns possuem imóveis, outros possuem polpudas contas bancárias, ações ou quotas de empresas, há quem receba aposentadoria dos cofres públicos ou salários bancados pelo fundo partidário — tudo isso tem que entrar no âmbito da responsabilização financeiro-patrimonial. Esconder a responsabilidade financeira no CNPJ das empresas será um erro; no caso, a responsabilidade tem que ser identificada no acionista controlador, direto em seu CPF.
O que definitivamente não se pode fazer, sob o falso argumento da liberdade de expressão, é deixar sem apuração e punição atos como esses, tal como vem sendo feito em outras oportunidades como quando foram elogiados reconhecidos torturadores, xingadas mulheres e pretos, deixaram de prestar os devidos cuidados sanitários à população, dentre muitos outros atos capitulados como infrações pela ordem jurídica. Órgãos que deveriam agir, foram omissos no controle dos atos de governo. É curioso como toda essa situação no governo anterior era considerado como uma “indelicadeza na sala de jantar”, como bem expressou Conrado Hübner, sendo que o atual governo tem cada palavra sua escrutinada sob lupa com menos de um mês de empossado.
Enfim, não vamos manter vivo o falso mito da cordialidade brasileira. Não se pode “passar o pano” para essa manada — tem que ser integralmente responsabilizado quem agiu, se omitiu, financiou e comandou.
Repito: em todo e qualquer caso de responsabilização deve-se respeitar o devido processo legal e a ampla defesa. Espera-se que os juízes e procuradores encarregados não busquem agir como “paladinos da justiça” deturpando o direito, o que gera nulidades processuais e frustrações sociais — já vimos que isso também não dá certo.
Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.
Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 17 de janeiro de 2023.