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18/07/23

CONJUR: Aspectos financeiros da reforma tributária aprovada na Câmara

Por Fernando Facury Scaff*

Muito já foi escrito sobre a PEC 45, mesmo sobre sua versão “A”, decorrente de sua aprovação na Câmara e enviada ao Senado. Usualmente o foco dos textos, inclusive os meus, têm sido aspectos tributários, isto é, decorrentes da relação entre o bolso do contribuinte e o Fisco.

Este texto segue outro caminho. Analiso em breves linhas alguns dos impactos referentes ao direito financeiro decorrentes do texto aprovado na Câmara — trato das relações internas no Poder Público. A troca dos atuais cinco tributos (IPI, PIS, Cofins, ICMS e ISS) por quatro novos (IBS, CBS, Imposto Seletivo e contribuição estadual do artigo 20 do Projeto) poderá ocasionar distúrbios das relações financeiras, isto é, nas relações de poder.

Iniciemos pelas vinculações da arrecadação aos direitos sociais. Como é sabido, o artigo 167, IV permite que haja vinculação da arrecadação de alguns impostos para financiamento da saúde e da educação.

O financiamento da saúde é assegurado, dentre outras fontes, pela destinação de 12% da receita com o ICMS e de 15% da receita com o ISS (CF: artigo 198, §2º, II e III, e §3º, I; Lei Complementar 141/12: artigo 6º e 7º). Embora não exista nenhum estudo de impacto econômico apresentado pelos formuladores da PEC 45 à sociedade, é necessário observar se a troca dos tributos, com base mais ampla, corresponderá ao que atualmente vem sendo destinado ao financiamento da saúde, sob pena de enfraquecer o sistema. Uma análise econômica das disposições constantes da PEC 45-A deve ser efetuada a fim de subsidiar as decisões a serem tomadas quanto à aprovação do projeto.

O financiamento da educação é assegurado, dentre outras fontes, pela aplicação de 18% da União e de 25% de estados e municípios, de suas receitas resultantes de impostos (CF: artigo 212). A situação neste ponto é diversa, pois é mencionada a “receita de impostos”, logo, transformando o ICMS e o ISS no IBS, não haverá impacto direto na vinculação existente — embora possa existir em face do montante atualmente destinado à essa atividade.

Todavia, seria uma oportunidade ímpar para a União ampliar sua participação no financiamento desse direito fundamental, transformando a CBS, que é batizada de “contribuição” em um “imposto”, o que ampliaria a base de incidência dos recursos para a educação. Bastaria denominar no âmbito do IVA dual o que está grafado como CBS para IBS-U (“U”, de União) e o “outro” passaria a ser IBS-E/M (de Estados e Municípios). Isso seguramente reforçaria as transferências de recursos para essa finalidade Registre-se que a PEC 45-A garante recursos ao Fundeb (20% — artigo 202-A, II), o que não invalida a preocupação aqui referida.

Outro aspecto preocupante sobre o financiamento da educação encontra-se em alguns estados — mencionarei apenas o de São Paulo, no qual há mais de 30 anos tem sido assegurado às universidades estaduais paulistas o percentual de 9,57% do ICMS. Acabando o ICMS, como ficará assegurada a autonomia financeira dessas instituições, cuja importância é conhecida de todos? Haverá uma lacuna jurídica, que deve ser analisada desde logo, alterando a essa vinculação para o IBS, o que pode ser feito diretamente na Constituição Federal, de forma a abranger todos os estados que se encontram em situação semelhante.

Mudemos agora o foco para as questões federativas.

A receita dos atuais Fundos Constitucionais (FPE e FPM — CF: artigo 159, I) irá murchar, pois o IPI será extinto, surgindo em seu lugar o IS — Imposto Seletivo. É prevista a substituição de um tributo pelo outro, mas quem garante a equivalência dos valores, já que nenhuma projeção econômica foi apresentada? Essa é a grande lacuna econômica de todo o Projeto.

O que acima referi não possui nenhuma correlação com os Fundos que estão previstos na PEC 45-A, que são: 1) o Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional (artigo 159-A), o 2) Fundo de Sustentabilidade e Diversificação Econômica do Estado do Amazonas (artigo 92-B, §2º), 3) o redesenhado Fundo de Combate à Pobreza, (art. 82); 4) o Fundo de Compensação de Benefícios Fiscais ou Financeiros-fiscais (artigo 12) e a esdrúxula permissão de que os Estados possam criar contribuições, em substituição aos pseudofundos estaduais para investimento em obras de infraestrutura e habitação (artigo 20).

Na verdade, os fundos a serem criados visam compensar os Estados em razão das alterações ocasionadas pela Reforma Tributária, em especial pela mudança da cobrança da origem para o destino, envolvendo também a questão dos incentivos fiscais já concedidos.

Um aspecto importante sobre o tema é a criação do Conselho Federativo do Imposto sobre Bens e Serviços (artigo 156-B), que será uma “entidade pública sob regime especial” (o que quer que seja isso…) que cria uma espécie de quarto nível federativo-fiscal em nosso país. Basta conferir algumas das competências atribuídas pela norma: regulamentar o IBS, uniformizar a interpretação e a legislação do IBS, e “dirimir as questões suscitadas no âmbito do contencioso administrativo tributário entre o sujeito passivo e a administração tributária”. São competências amplas demais para um Conselho cuja operacionalização está sendo desenhada de forma muito complexa, em sua composição e em sua forma de deliberação.

A composição desse Conselho Federativo terá 27 representantes dos Estados e do DF e 27 representantes dos mais de 5.500 municípios, sendo que 14 serão escolhidos pelos votos de cada município, e 13 “com base nos votos de cada município ponderados pelas respectivas populações” (artigo 156-B, §3º, II, “b”).

As deliberações desse Conselho Federativo, de 54 representantes serão aprovadas se obtiverem cumulativamente os votos da maioria do conjunto de Estados e do DF e também daqueles que correspondam a mais de 60% da população do país. E, em relação ao conjunto de municípios (e novamente o DF), da maioria de seus representantes (artigo 156-B, §4º).

Essa redação poderá dar margem a inúmeras confusões, pois mistura critérios federativos (uma unidade federada igual a um voto) com critérios demográficos (alguns entes federados terão mais peso que outros, em face da população), criando uma espécie de poder de veto em favor dos estados mais populosos. Considerando a vastidão de suas competências, vale a pena rever tais critérios de votação a fim de dar maior isonomia na federação, hoje desequilibrada, e que assim permanecerá. Além disso, como se trata de um único tributo para a arrecadação dos dois níveis de entes federativos (estados e municípios), qual a razão de dividir em grupos estanques? Isso segue a lógica atual, na qual existe um tributo dos estados (ICMS) e outro dos municípios (ISS).

Nesse sentido, vale a pena olhar a solução que foi adotada pelo artigo 2º da Lei Complementar 160/17, que foi amplamente exitosa. Nela constava a seguinte fórmula para aprovação de deliberações: obtenção de votos favoráveis de, no mínimo, dois terços das unidades federadas e um terço das unidades federadas integrantes de cada uma das cinco regiões do País. Esse desenho jurídico deve ser adaptado à ideia pretendida, mas parece muito mais adequada às deliberações federativas do que a proposta da PEC 45-A. Não se deve esquecer que a Lei Complementar 160/17 era uma norma temporária (e não permanente) e apenas para os Estados, o que gera diferenças práticas e conceituais que devem ser consideradas.

Não vou me deter na questão do pacto federativo, cláusula pétrea constitucional, que sairá abalado caso venha a ser mantida a fórmula da PEC 45-A, uma vez que grande parte do poder será deslocado para esse Conselhão, reduzindo fortemente a autonomia dos estados e municípios brasileiros — sem contar a existência do voto duplo para o DF. Tanto isso é verdadeiro que diversos Estados patrocinaram a introdução do artigo 20 na PEC 45-A, que lhes dá poderes para tributar através de contribuições — inclusive as exportações —, o que se torna uma brecha no sistema proposto e uma alternativa de fuga à camisa de força arrecadatória do IBS — aliás, os municípios não ficarão com nem um trocado desse montante?

Outro ponto a ser observado diz respeito ao controle externo desse Conselho Federativo. Para se ter uma ideia da confusão proposta: será exercido pelo Poder Legislativo de cada ente federativo, com o auxílio dos Tribunais de Contas correspondentes, que atuarão “de forma coordenada” (artigo 156-B, IV). Quero ver quem coordenará essa atividade de controle — muito cacique para poucos índios…

Enfim, existem vários aspectos financeiros que ultrapassam os tributários nessa PEC 45-A, que também devem ser objeto de detida atenção por parte do Senado.

Recomendação final: não se deve ter pressa na aprovação desse texto, pois a transição está prevista para ocorrer durante dez anos. Logo, será (mais) um erro ter pressa hoje, para corrigir eventuais erros durante dez anos. Vamos sair do eterno improviso, característica de nosso país nas últimas décadas e presente em toda essa discussão da reforma tributária.

Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.

Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 18 de julho de 2023.