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02/03/22
Por Fernando Facury Scaff*
Levante a mão quem for contra aumento de salário para professores, em especial os da educação básica (nível fundamental e médio). Aposto que ninguém levantará. Trata-se de uma medida justa e adequada para uma categoria sofrida, mal remunerada e desvalorizada, mas que é de suma importância para o futuro de nosso país. As crianças e adolescentes para as quais esses docentes ministram aulas serão os adultos de amanhã, condutores dos destinos deste país. Sou a favor de melhor remuneração e valorização do magistério como um todo, e, com especial atenção, para os docentes dos níveis iniciais da educação básica.
O presidente Bolsonaro divulgou dias atrás o novo Piso Nacional Salarial do Magistério Público, cujo reajuste foi de 33,24%. O valor passou de R$ 2.886 para R$ 3.845 e se aplica a docentes vinculados às redes municipal, estadual e federal que lecionam no ensino infantil, fundamental ou médio e tenham carga horária de 40 horas semanais.
A Lei que criou o Piso Salarial para os docentes é de nº 11.738/08 e foi sancionada pelo ex-presidente Lula, tendo por fundamento a ideia de que é necessário que haja um valor mínimo nacional para valorização dessa categoria — o que, como visto, é extremamente louvável.
Observados esses fatos, alguns pontos devem ser destacados.
Primeiro, há um debate sobre autonomia dos entes federados, pois o aumento é determinado de forma nacional, porém a educação básica é dividida em educação fundamental (de competência prioritária dos municípios) e educação média (de competência prioritária dos Estados). O gasto da União com esses níveis de ensino é muito baixo. Logo, o aumento salarial que é concedido nacionalmente pela União, apenas se aplica de forma residual aos gastos federais. A União concede reajuste de salário cujo pagamento será de responsabilidade de estados e Municípios — o que se caracteriza como um verdadeiro gasto com o chapéu alheio. Lembra aquele sujeito que reparte a conta no bar e paga a menor parte, embora tenha consumido mais que todos — troque o “consumido” por “faturamento eleitoral” e a situação é idêntica.
Segundo, pela Lei o aumento salarial é apurado em razão da variação da arrecadação tributária, a qual disparou nos dois últimos anos. Isso traz preocupações, pois aumento salariais são despesas obrigatórias (faça chuva ou sol, têm que ser pagas) e a arrecadação aumentou em grande parte por dois fatores, ambos flutuantes, fruto da péssima política governamental federal: 1) pelo inadequado tratamento para o preço dos combustíveis derivados de petróleo; e 2) pelo negacionismo no enfrentamento da crise hídrica, que fez o preço da energia elétrica disparar. Dessa forma, os tributos que são cobrados como uma percentagem desses valores, acompanharam a alta dos preços. E a arrecadação aumentou. Espera-se que, com melhor condução governamental, esses preços estratégicos voltem a patamares civilizados, e, com isso a arrecadação seja proporcionalmente reduzida. Eis a preocupação: se a arrecadação cair, os gastos obrigatórios permanecerão. É uma situação preocupante, que deve ser mitigada por outras medidas financeiras que, sinceramente, penso que o atual governo federal não adotará — os exemplos falam por si.
Terceiro, há um mecanismo muito inteligente, de complementação financeira pela União dos recursos a serem gastos com a valorização do ensino básico e remuneração de seus profissionais, que é o Fundeb, objeto de recente alteração pela Emenda Constitucional 108, de 2020. Nessa Emenda se identifica que a União complementará os recursos que os estados e Municípios devem aportar ao Fundo (CF, artigo 212-A, em especial os incisos IV e V). Todavia, verifica-se uma ressalva no artigo 60 do ADCT (tem sempre uma ressalva financeira no ADCT — aprenda isso, cara leitora/leitor), que determina que a complementação financeira da União será escalonada, só chegando ao percentual previsto no corpo permanente da CF (artigo 212-A) após 06 anos de vigência. Logo, a complementação financeira da União só será plena após o mandato do sucessor do presidente Bolsonaro — que pode até ser ele mesmo, caso reeleito.
Em síntese, para tornar curta uma longa história e continuar a ser lido por você, que chegou até este ponto da exposição: O governo Bolsonaro deu um justo reajuste aos docentes de estados e Municípios, baseado no aumento de arrecadação destes (o que não deve ser permanente pois é fruto da má condução de política de preços estratégicos conduzida pelo próprio governo federal), e a complementação financeira federal para custeio desse reajuste só será plena em 2026.
Dessa forma, o bônus eleitoral do reajuste salarial fica para o presidente, e o ônus do pagamento fica para governadores e prefeitos. Foi noticiado que houve prefeito cogitando em renunciar, pois não terá recursos para pagar o que o presidente concedeu com o seu chapéu. Duas das grandes associações de Municípios, a CNM — Confederação Nacional dos Municípios e a FNP — Frente Nacional de Prefeitos repudiaram o procedimento do presidente.
Constata-se que a expressão “dar o benefício com o chapéu alheio” não diz respeito apenas a incentivos fiscais interfederativos, mas também a gastos públicos interfederativos.
Quais as consequências? No âmbito político, a busca pela narrativa de quem concedeu o reajuste (o presidente) e quem não o pagou (governadores e prefeitos). No âmbito jurídico haverá intensa judicialização para evitar o pagamento do reajuste, seja neste ano ou nos demais.
Com tanta briga federativa não há país que sobreviva financeiramente. Vivemos em federalismo litigioso ao invés de harmonioso — se fosse um casamento já teria havido divórcio.
Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff Advogados.
Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 15 de fevereiro de 2022.