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07/06/22

CONJUR: CFEM: entre vinculações, vedações e o show do Gustavo Lima

Por Fernando Facury Scaff*

Um dos temas mais comentados nestes dias foi a contratação pela Prefeitura de Conceição do Mato Dentro, em Minas Gerais, de um show do cantor sertanejo Gusttavo Lima, a ser pago com dinheiro da CFEM — Compensação Financeira pela Exploração Mineral. Analisemos a questão.

A CFEM é o pagamento de um preço público realizado por empresas mineradoras à União (representada pela Agência Nacional de Mineração), cuja arrecadação é transferida por esta a estados e municípios (artigo 20, §1º, CF). Logo, trata-se de receita municipal, transferida pela União, pois a esta pertencem os recursos minerais (artigo 20, IX, CF). O pagamento decorre da exploração mineral e tem por base o valor da substância explorada. Como os bens minerais são recursos esgotáveis, pois minério só dá uma safra, uma vez esgotada a mina, a atividade minerária se extinguirá e os recursos da CFEM deixarão de ser pagos.

Ocorre que a regulação do uso da CFEM (e de outros royalties envolvendo petróleo, gás e recursos hídricos) contém uma falha, pois o artigo 8º da Lei 7.990/89, veda seu uso para pagamento de dívida e para pagamento do quadro permanente de pessoal, admitindo três exceções: (1) para pagamento de dívidas para com a União e suas entidades; (2) ao custeio de despesas com manutenção e desenvolvimento do ensino e (3) para capitalização de fundos de previdência.

A falha está no fato de a lei apenas vedar, ao invés de vincular o uso desse recurso esgotável. Apenas vedando e com os recursos sendo depositados no caixa único da prefeitura, o montante se despersonaliza e dificulta o devido controle por parte dos Tribunais de Contas. O correto seria vincular.

Como é sabido, vincular implica em criar um elo, um liame normativo entre receita e despesa, obrigando os entes públicos a usar os recursos nas finalidades estabelecidas. Exemplos podem esclarecer: os entes federados são obrigados a gastar determinada parcela de sua receita de impostos em educação e em saúde (artigo 160, §4º, CF, que admite estas exceções). No caso da CFEM, a norma constitucional que proíbe a vinculação se refere apenas a impostos (artigo 167, §4º, CF), não se aplicando a uma receita patrimonial, como neste caso.

Em face da certeza do esgotamento das reservas minerais que estão sendo exploradas no município, o que fará com que a fonte de recursos da CFEM também se esgote, seria mais adequado vincular sua utilização especificamente na modificação da base econômica daquela localidade.

Exemplificando: o município de Itabira, em MG, cujas montanhas de ferro estão prestes a se esgotar, não seria apenas uma fotografia na parede, como no belo poema de Carlos Drummond de Andrade, que nos dá a pista do que fazer. Disse o poeta: “De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:/ esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil,/ este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;/ este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;/ este orgulho, esta cabeça baixa…/ Tive ouro, tive gado, tive fazendas./ Hoje sou funcionário público./ Itabira é apenas uma fotografia na parede./ Mas como dói!”. Imaginem só a renda do município de Itabira se tivesse sido aplicada na diversificação de sua base econômica? Poderia ter mais gado e fazendas, produziria fina ourivesaria, talvez mais artesanato como o do velho santeiro — apenas para ficar nas cogitações poéticas de Drummond, podendo ser expandidas as possibilidades.

Os exemplos poderiam se multiplicar, envolvendo outros municípios, como o de Parauapebas, no Pará, cujas notícias informam ter havido uma churrascada com 20 mil quilos de carne, paga com recursos da CFEM. É a transformação de minério em carne — um recurso esgotável financiando festas que se encerram em 24 horas.

Retornemos ao município de Conceição do Mato Dentro, que contratou o show do cantor sertanejo Gusttavo Lima. Não há dúvidas de que existiriam outros usos mais adequados para esse dinheiro em prol da população local, mas não se pode dizer, apenas com as informações disponíveis pela mídia, que houve ilegalidade, pois não existe vedação ao uso desses recursos para essa finalidade. Não conheço o cantor, e nem sou fã de música sertaneja, mas ele entrou nessa fria sem saber de onde vem o dinheiro — suponho que seu agente tenha recebido uma proposta de show, olhou a agenda livre e aceitou o contrato, que, se cumprido, deve ser pago.

O fato é que a CFEM é paga pelas empresas mineradoras, mas as prefeituras nem sempre os utilizam com a devida sabedoria, e os órgãos de fiscalização têm dificuldade em exercer o efetivo e necessário controle sobre o uso desses recursos. Deveria ser criada uma norma vinculativa para que o uso da CFEM só ocorresse em investimentos (despesas de capital) que tivessem por finalidade modificar a base produtiva daquele município. Assim, quem sabe, seria possível evitar este tipo de gasto público irresponsável, populista e possivelmente eleitoreiro.

Tudo isso poderia ser diferente se existisse uma norma prevendo vinculação desse dinheiro para a modificação da base econômica do município. Quem sabe algum congressista se anima e propõe um projeto de lei nesse sentido?

Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.

Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em  07 de junho de 2022.