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08/11/22
Por Fernando Facury Scaff*
Quem gosta de rock conhece o álbum da banda irlandesa U2 denominado Como desarmar uma bomba atômica (How to dismantle an atomic bomb), gravado em 2004 e multipremiado ao longo do mundo.
Ao pensar sobre o orçamento secreto pós-eleições, o nome desse álbum me veio à mente. Como desmontar a bomba atômica do orçamento secreto, que foi revelado pelo jornalista Breno Pires em reportagem publicada na edição de 28 de janeiro de 2021 do jornal O Estado de S. Paulo, intitulada “Planalto libera R$ 3 bi em obras a 285 parlamentares em meio à eleição no Congresso”, o que deu apoio à eleição do deputado Arthur Lira (PP-AL) à Presidência da Câmara dos Deputados e de Rodrigo Pacheco (PSD-MG) à Presidência do Senado. Demonstrava a máquina de cooptação parlamentar que então se iniciava, e que obteve pleno êxito.
Quem quiser conhecer melhor o orçamento secreto deve consultar as 68 reportagens veiculadas pelo Estadão acerca do tema (todas acessíveis aqui), escritas por vários repórteres, dentre eles Breno Pires, que posteriormente passou à revista piauí, na qual escreveu que a equipe econômica pediu que Bolsonaro vetasse o orçamento secreto. Este conjunto demonstra o mecanismo usado pela Presidência da República para a cooptação de parlamentares, através do uso de dinheiro público, sem qualquer transparência, pois não se tem a exata noção de quem formulou os pedidos, quem foi atendido e qual a barganha realizada. O montante orçado entre 2020 e 2022 chega a estratosféricos R$ 80 bilhões, dos quais cerca de R$ 30 bilhões foram efetivamente pagos e R$ 45 bilhões já empenhados.
A empresa estatal que vem sendo usada para as compras do orçamento secreto é a Codevasf (Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco). Gilberto Bercovici em 16 de maio de 2021 já havia demonstrado na ConJur que a Lei 14.503/2020 ampliara a atuação dessa empresa, criada para atuar no Vale do Rio São Francisco, até uma bacia hidrográfica no portal da Amazônia. O título do texto revela peculiar bom humor do colunista: “O Rio São Francisco, quem diria, acabou no Amapá”. Ou seja, ampliou a atuação geográfica da empresa para que ela alcançasse mais estados e atendesse maior número de parlamentares.
O assunto está em debate no STF, através da ADI 854, de relatoria da ministra Rosa Weber, que havia concedido liminar um ano atrás (05 de novembro de 2021) sustando a execução do orçamento secreto, porém, mesmo após a liminar ter sido referendada pelo Plenário (em 11 de novembro de 2021) voltou atrás e a reconsiderou parcialmente (em 6 de dezembro de 2021), o que também foi referendado pelo Plenário (em 17 de dezembro de 2021).
Enfim, passadas as eleições, conduzidas pelo TSE com absoluta correção e aprumo (para quem tiver interesse em conhecer a análise da Missão de Observação Eleitoral da USP, ver aqui para o 1º turno e aqui para o 2º turno), o que fazer para desmontar a bomba atômica do orçamento secreto?
Deve-se considerar que existe um conjunto de emendas parlamentares previstas na Constituição: (1) as emendas individuais (artigo 166, parágrafos 9º e 11) e (2) as emendas coletivas (artigo 166, parágrafo 12), subdivididas em (2.1) emendas de bancadas estaduais e (2.2) emendas de comissões permanentes. Já as (3) emendas de relator não possuem amparo constitucional.
Sob a ótica da isonomia republicana as emendas parlamentares (1) individuais e as (2) coletivas contemplam todos os parlamentares, sejam de oposição ou de situação.
Já as (3) emendas de relator são orçamentariamente opacas e não respeitam a isonomia republicana entre os parlamentares. Isto porque só quem tem “direito” a elas é quem vota com o governo – ou seja, servem como instrumento de cooptação de congressistas para votar conforme as pautas de quem tem o poder de liberar o dinheiro, que é a Presidência da República. Parece óbvio que isso viola o princípio republicano, que tem por base a isonomia de tratamento e a transparência – que não é a mesma coisa que publicidade, conforme exposto em outro texto. O próprio ministro da Controladoria-Geral da União admitiu que o Portal da Transparência não tem dados sobre o orçamento secreto.
Aqui é o ponto: Tal procedimento deve ser expurgado de nosso sistema, qualquer que seja o presidente da República, o atual, o eleito e os vindouros, de qualquer partido ou espectro ideológico, pois mancha nossa democracia. É uma oportunidade ímpar para o STF acabar com tal prática de uma vez por todas, o que se espera venha a ocorrer ainda este ano.
Todavia, deve-se considerar que nossa república é e permanece imperfeita, sendo construída a cada dia. Em um mundo ideal, todas estas emendas parlamentares deveriam ser expurgadas e o orçamento, sob a correta e necessária condução do Poder Legislativo, deveria dirigir os recursos públicos de acordo com as políticas públicas (leia-se: de todos) e não para objetivos pessoais (individuais) ou mesmo de um grupo de parlamentares (coletivas).
Ocorre que nos dias atuais, acabar com todas essas emendas parlamentares que possuem amparo constitucional é um sonho. Já será uma vitória se conseguirmos acabar com as emendas de relator, que não tem assento na Constituição.
Logo, qual a alternativa política para solucionar o problema parlamentar que ocorrerá, caso o STF julgue inconstitucionais as emendas de relator?
Vislumbro uma alternativa: ampliar o valor das emendas parlamentares individuais e coletivas, que estão ao alcance de todos os parlamentares, sejam da situação ou da oposição, e expressamente vincular seu uso às políticas públicas (leia-se: de todos) que forem criadas ou estiverem sendo desenvolvidas.
Assim, caso haja uma política pública na área de saúde para ampliação de vacinação, os parlamentares que desejarem poderão dirigir suas emendas individuais ou coletivas para acrescer valores ao que está sendo planejado ou executado, sem poder criar despesas fora do planejamento governamental. Se a base eleitoral daquele parlamentar for na cidade de Curralinho, no estado do Pará, ou na cidade de Monte Aprazível, no estado de São Paulo, ele poderá aumentar os recursos já alocados dentro do planejamento governamental para aquela específica política de saúde pública.
Vejam que tal proposta é bastante diferente do sistema atual, de orçamento secreto, vinculado às emendas de relator, pois estas (1) não valem para todos, só para os que apoiam o governo naquela votação; (2) e os recursos podem ser dirigidos conforme o interesse do parlamentar, descasado de qualquer planejamento governamental. O que se propõe respeitará a isonomia, pois todos terão igual acesso aos recursos e reforçará as políticas públicas em curso – além de permitir que o parlamentar tire fotos e espalhe outdoors informando que aumentou os recursos para tal ou qual finalidade.
Enfim, não é a solução ideal, mas é a possível. E desmontará a bomba atômica do orçamento secreto que está corroendo nossa democracia.
Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.
Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 08 de novembro de 2022.